terça-feira, 31 de agosto de 2010

Qual o rumo das reformas de Raúl Castro?

Os dirigentes cubanos rechaçam comparações, mas muitos analistas identificam inspiração das experiências chinesa e, particularmente, vietnamita. O Estado continuará a controlar a maior parte da economia e a regular seu funcionamento, mas novas formas de propriedade serão permitidas e até incentivadas. Várias atividades comerciais e de serviços, estatizadas desde os anos 60, poderão ser exploradas em caráter privado. O governo já tinha revogado, há alguns meses, o monopólio estatal de cabeleireiros e barbeiros. Dezenas de outros setores deverão ser contemplados pela abertura. O artigo é de Breno Altman.

As medidas anunciadas pelo presidente cubano, em seu discurso de ontem (1/8) diante da Assembléia Nacional do Poder Popular, abrem nova fase na vida do país. Desde sua posse, em 2008, Raúl vinha adotando reformas lentas e graduais, nos marcos do regime socialista. O enunciado de providências mais amplas e detalhadas, porém, parece indicar que esse processo será acelerado.

O núcleo principal do programa apresentado aos deputados é marcado pelo estímulo ao empreendedorismo. Várias atividades comerciais e de serviços, estatizadas desde os anos 60, poderão ser exploradas em caráter privado. O governo já tinha revogado, há alguns meses, o monopólio estatal de cabeleireiros e barbeiros. Dezenas de outros setores deverão ser contemplados pela abertura.

Os dirigentes cubanos rechaçam comparações, mas muitos analistas identificam inspiração das experiências chinesa e, particularmente, vietnamita. O Estado continuará a controlar a maior parte da economia e a regular seu funcionamento, mas novas formas de propriedade serão permitidas e até incentivadas.

Não se trata de uma novidade absoluta. Desde os anos 90, quando a União Soviética desapareceu, o governo cubano adotou legislação para facilitar o investimento internacional, a formação de empresas mistas e até o funcionamento de companhias sob controle estrangeiro. Sem o fluxo de recursos provenientes do antigo campo socialista, a sobrevivência de Cuba passou a depender de seu acesso à poupança externa.

O turismo foi o principal segmento alavancado por essa alteração. Mas a mineração, a biotecnologia e a produção de tabaco e bebidas, entre outros ramos, também puderam se reerguer a partir da associação com o capital além-fronteiras. Depois de ter perdido mais de 30% de seu PIB entre 1990 e 1993, Cuba atravessou os últimos quinze anos com um crescimento médio anual em torno de 5%.

A recuperação econômica permitiu ao país resolver os problemas mais dramáticos de escassez e manter razoavelmente intactos os serviços públicos de educação e saúde, reconhecidos por sua universalidade e qualidade. A vida cotidiana dos cubanos, no entanto, continuou ditada pelo sacrifício pós-soviético: os recursos gerados pela sociedade, em especial as divisas com exportações, pagam as contas da rede social montada pela revolução, mas são insuficientes para a prosperidade dos indivíduos.

Esse cenário conduziu a uma situação de baixa produtividade, salários defasados, informalidade da economia e aumento da corrupção. As relações com Venezuela e Brasil, a partir da conquista de seus governos por partidos de esquerda, ampliaram as oportunidades da ilha caribenha. As enfermidades da economia local, contudo, continuaram praticamente intocadas. O programa reformista de Raúl Castro busca um caminho para enfrentá-las.

Logo que assumiu a presidência convocou a população a discutir nos bairros as deficiências e erros do modelo econômico. Também levantou uma série de proibições, como a de adquirir celulares e eletrodomésticos. Seu feito mais notável, até agora, talvez tenha sido a nova política agrária, permitindo aos camponeses o usufruto das terras, a liberdade comercial e o acesso a equipamentos. A emergência dessa agricultura privada melhorou de forma significativa o abastecimento das cidades.

Aparentemente são dois os objetivos principais de sua estratégia: reduzir fortemente os gastos do Estado e desenvolver um mercado interno através da iniciativa empresarial dos cidadãos. Quase 80% dos cinco milhões de trabalhadores cubanos são servidores públicos. Calcula-se que um milhão não tem função específica ou produtiva. Raúl pretende dispensá-los, oferecendo a contrapartida de emprego em uma empresa autônoma ou de abrir seu próprio negócio.

O enxugamento do Estado, nessa lógica, permitiria a ampliação dos investimentos públicos, hoje consumidos pela própria máquina administrativa. O empreendedorismo impulsionaria tanto o fornecimento de bens e serviços quanto o crescimento do mercado interno e uma maior arrecadação tributária. Medidas mais arrojadas de associação com o capital internacional garantiriam oferta de insumos, além de aumento das exportações e dos investimentos estrangeiros.

Outra questão é o bloqueio imposto pelos Estados Unidos. As reformas buscam atenuar os estragos provocados pelo embargo estabelecido desde 1962. Mas também preparam Cuba para o dia em que findar essa anomalia. Uma economia raquítica e sem perspectiva seria presa fácil dos dólares e valores norte-americanos, com o risco do bloqueio ser trocado por práticas neocoloniais. A revitalização produtiva, aliada à integração com a América Latina, pode vir a ser um escudo indispensável contra esse perigo.

Raúl Castro não parece ver, nessas decisões, contradição de fundo com o socialismo. O presidente dá sinais, cada vez mais claros, de que está convencido da necessidade de modernizar o país para manter os direitos sociais e o próprio sistema. Mesmo reafirmando que a cautela continuará a orientar seu método, lançou um formidável pacote de desafios para a revolução cubana.

Breno Altman é jornalista e diretor editorial do site Opera Mundi (www.operamundi.com.br)


Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16840

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