Por Carlos Henrique M. Menegozzo
1. Introdução
1.1 Juventude: um tema controverso
Se há consenso no debate sobre a questão da juventude, ele passa pelo
reconhecimento da enorme controvérsia que envolve até a definição do
termo. Isto, em parte, se deve e é agravado pela aparente transparência
de seu conteúdo: muitos de nós já vivemos a experiência de ser jovem ou
convivemos com grupos juvenis, o que faz com que todo mundo tenha uma
opinião sobre o tema. De um ponto de vista geral, pode-se dizer que as
várias opiniões sobre a própria definição do conceito de juventude
oscilam entre dois extremos.
De um lado, há uma visão demasiado subjetivista, que entende a juventude com uma espécie de estado de espirito ou atitude diante do mundo. Materializada no culto ao corpo e em padrões de consumo, a juventude é alçada, assim, à condição de ideal para todas as idades. No extremo oposto, bastante arbitrário, as percepções e experiências específicas deste segmento da sociedade acabam ocultadas pela delimitação estanque de faixas de idade. Neste caso, ser jovem equivale a ter de 16 a 29 anos, por exemplo.
De um lado, há uma visão demasiado subjetivista, que entende a juventude com uma espécie de estado de espirito ou atitude diante do mundo. Materializada no culto ao corpo e em padrões de consumo, a juventude é alçada, assim, à condição de ideal para todas as idades. No extremo oposto, bastante arbitrário, as percepções e experiências específicas deste segmento da sociedade acabam ocultadas pela delimitação estanque de faixas de idade. Neste caso, ser jovem equivale a ter de 16 a 29 anos, por exemplo.
1.2 A juventude sob os olhares da esquerda
Também na política, sobretudo entre as esquerdas, as opiniões a
respeito do tema são variadas. Raramente, entretanto, a discussão se
pauta por uma definição qualificada do conceito. É comum, por exemplo, a
associação da juventude com uma tendência natural à rebeldia e à
identificação com as lutas populares. Assim como a consideração da
juventude como um momento de dedicação abnegada a uma causa, o que acaba
por reduzir o seu papel estratégico à rotina “tarefeira” na celebrada
condição de “pau pra toda obra”.
Noutros casos, a juventude é entendida, de modo mais rigoroso, como
uma etapa específica da vida, atravessada por situações concretas muito
diversas – não se tratando de uma juventude genérica no singular, mas de
juventudes, no plural (juventude negra, feminina, trabalhadora, etc) – e
merecedora de cuidados especiais. Ocorre que a consideração das várias
situações concretas em se apresenta a condição juvenil, e que reflete um
entendimento mais qualificado do assunto, há anos vem sendo repetido
como novidade, sem desdobramentos imediatos ou estratégicos
significativos. O mais significativo desses desdobramentos corresponde,
provavelmente, à acertada tradução deste entendimento mais qualificado
em políticas públicas. Estas, todavia, acabam muitas vezes reduzidas a
visões estritamente reformistas ou ao mero eleitoralismo: perde-se de
vista a articulação entre reformas parciais e revolução.
A ausência de uma compreensão mais apurada das condições em que vive
e, portanto, dos limites e potencialidades da juventude numa estratégia
de transformação social, por parte das esquerdas, torna-se evidente nas
declarações que se ouve quando da aparente apatia ou da explosão de
movimentos juvenis. Ora a desmobilização é atribuída a nociva
intervenção dos partidos, ora a uma cultura política conservadora e
consumista, ora à traição das direções. Pouco se fala, por exemplo, dos
fatores de ordem econômica que determinam os fluxos e refluxos de
movimento. Como também falta muita autocrítica das forças políticas
organizadas a respeito de sua própria incompreensão do fenômeno.
Ao contrário, frente às explosões de movimento, não tardam em se
manifestar as leituras segundo as quais a tendência à rebeldia é natural
da juventude. Bem como as posturas autocelebratórias por parte das
forças políticas organizadas que, traçando paralelos diretos com
explosões de movimento do passado – aí as referências sobre 1968 e sobre
os caras-pintada em 1992 são obrigatórias – procuram extrair, de modo
oportunista, algum saldo político de uma onda de protestos para cuja
emergência deram pouca ou nenhuma contribuição efetiva. Essas explosões
têm sido muito mais fruto de uma combinação de fatores circunstanciais
onde as forças organizadas têm cumprido um papel passivo, que o
resultado de uma construção efetiva desde as bases.
Tais considerações nos levam a constatar que falta às esquerdas um
entendimento mais elaborado a respeito da condição juvenil. O que se
deve considerar como algo da maior gravidade, já que este entendimento é
imprescindível não apenas a uma percepção mais completa dos reais
limites e possibilidades que oferece a juventude do ponto de vista da
luta pelo socialismo; mas também à potencialização dessa capacidade
transformadora por meio de ações que não passam, necessariamente, pelos
próprios movimentos juvenis.
Mais que um exercício meramente acadêmico, portanto, a tarefa de
estabelecer uma rigorosa definição para o conceito de juventude
compreende um esforço de análise da realidade concreta, imprescindível a
toda a ação transformadora que, dialogando com este segmento específico
da sociedade, se pretenda politicamente eficaz.
2.Conceito de juventude
2.1 Juventude como etapa transitória da vida
Não se pode negar que a vida humana é marcada por um ciclo que se
inicia com o nascimento e que se encerra com a morte. E que em toda e
qualquer cultura, este ciclo vital é segmentado em etapas diferenciadas
de desenvolvimento biológico e social, marcadas em maior ou menor grau
por um período de imaturidade, de maturidade, e de decaimento ou
inatividade. Apesar das polêmicas existentes em torno do conceito de
juventude, uma ideia fundamental, e relativamente difundida, é de que a
juventude corresponde a um momento intermediário entre duas etapas deste
ciclo da vida – mais precisamente ente a imaturidade e a maturidade
plena, ou entre a infância e a fase adulta.
Os critérios que caracterizam essa passagem, todavia – e aí reside a
polêmica de um debate mais qualificado – não podem ser apreendidos em
toda a sua complexidade a partir da redução do conceito de juventude a
um estado de espírito ou uma atitude diante do mundo; a faixas etárias
estanques ou a um comportamento, supostamente natural, de rebeldia e
identificação com as causas populares. Os critérios que definem a
condição juvenil são muitos e envolvem fatores biológicos, psicológicos,
econômicos, educacionais e culturais. A ênfase num ou outro aspecto
varia conforme as visões adotadas em diferentes campos do conhecimento
científico.
Em vertentes da medicina ocidental moderna, por exemplo, a ênfase
recai no amadurecimento biológico do organismo humano perspectiva à qual
corresponde, mais precisamente, o conceito de puberdade. Na psicologia,
por seu turno, esta fase de transição é associada mais ao
desenvolvimento de aspectos cognitivos ou de certas faculdades mentais e
corresponde, geralmente, ao conceito de adolescência. Finalmente, esta
etapa intermediária pode não estar associada a critérios biológicos ou
psicológicos, mas a um conjunto determinado papéis – um conjunto de
direitos e deveres social e historicamente estabelecidos – que são
reservados a grupos sociais específicos, e que se encontra mais
comumente associada ao conceito de juventude.
2.2 A condição juvenil de um ponto de vista totalizante
A visão especializada que cada uma dessas áreas oferece certamente
contribui para um entendimento mais aprofundado de cada aspecto do
complexo fenômeno da juventude. Entretanto, não se pode perder de vista
uma visão de conjunto dessa passagem. Em função disso é que um
entendimento mais completo da condição juvenil pressupõe a adoção de um
ponto de vista totalizante. Um ponto de vista que leva em consideração a
complexa interação de fatores de ordem biológica, psicológica,
educacional, econômica e social derivados do reconhecimento da
especificidade desta etapa transitória da vida.
São vários os pontos a partir dos quais podemos avançar na
caracterização da condição juvenil, sendo um deles o que corresponde ao
esforço por descrever o conjunto de direitos e deveres que singulariza a
condição juvenil – entendendo este conjunto como uma construção
histórica e social que se faz sobre processos de ordem biológica e
psicológica, a ele subjacentes. Mas é preciso reconhecer que essa tarefa
é das mais difíceis. Não que seja impossível empreendê-la. É que se
trata, primeiramente, da descrição de meias medidas postas entre
situações e papéis sociais mais facilmente identificáveis porque
definidos como extremos: completa imaturidade e maturidade plena. Mas
essa dificuldade se deve também ao fato de que tais direitos e deveres
são estabelecidos socialmente em condições históricas determinadas. Isto
quer dizer que o seu conteúdo pode variar de uma sociedade para outra
bem como numa mesma sociedade ao longo do tempo.
Esta necessária relativização histórica, vale dizer, não impede que
se descreva minuciosamente os fatores que concretamente envolvem a
condição juvenil. Apenas exige que essa descrição deve se dar sempre com
referência a um contexto social concreto e levando em consideração,
insistindo num ponto de vista totalizante, fatores como situação de
classe, condição de gênero e identidade étnica, por exemplo. E o
contexto social concreto no qual nos inserimos é o das modernas
sociedades capitalistas.
3. Juventude no capitalismo: situação e potencial político
3.1 Relação experimental com o presente e capacidade de renovação cultural
Um primeiro traço marcante da condição juvenil no capitalismo
corresponde àquilo que na sociologia tem sido definido como uma espécie
de moratória em relação a certas obrigações consideradas próprias da
idade adulta, tais como exercício de uma atividade profissional em
caráter definitivo, a responsabilidade pelo próprio sustento, além da
constituição e sustento de um núcleo familiar autônomo.
Essa moratória abre a possibilidade da vivência de uma relação
provisória ou experimental com o presente marcada pela busca do próprio
papel e lugar no mundo, pela preparação para o exercício deste papel e,
portanto, pelo amadurecimento da própria identidade. Isso não significa
que a juventude corresponda a uma fase de inteira liberdade. Ao
contrário, sobre ela recaem pressões e responsabilidades específicas. A
pressão pela necessária definição de um papel e de um lugar no mundo é a
primeira delas.
Esta combinação particular de fatores encerra um potencial explosivo,
que corresponde à chamada crise da juventude. Em termos gerais esta
crise consiste na incompatibilidade entre expectativas e aspirações
alimentadas nesta fase de busca e de preparação, com as possibilidades
reais de desenvolvimento pessoal e profissional oferecidas nos limites
da ordem estabelecida. As frustrações advindas dessa incompatibilidade,
não raro, se combinam com conflitos de ordem geracional, isto é, com o
confronto entre as próprias aspirações e expectativas e aquelas
projetadas sobre o jovem pelas gerações pregressas, notadamente pelos
pais.
Isso se combina também com a insegurança e a ansiedade derivadas da
impossibilidade de ocupação de qualquer espaço na sociedade. Nas
formações modernas capitalistas, as relações de produção são reguladas
pelas leis de mercado, não havendo papéis sociais reservados os quais
aqueles reconhecidos como jovens devam assumir através de uma transição
institucionalizada em ritos de passagem, como as provas de força e
resistência em sociedades indígenas, por exemplo. Dito claramente: a
juventude nas modernas sociedades capitalistas vivem uma insegurança
advinda do risco do desemprego.
Ansiosos e inseguros na busca pela definição de seu papel na
sociedade, os jovens procuram agregar-se em torno de afinidades,
adotando valores e práticas próprios. Nesse contexto, os jovens
tornam-se uma força potencialmente disponível a movimentos que ofereçam
possibilidades de identificação e de ocupação efetiva de um papel na
sociedade – o que pode ocorrer com movimentos transformadores ou
conservadores (vide, por exemplo, a experiência das juventudes nazista e
fascista nos anos 1930 e 1940). As tensões e rupturas envolvidas nesse
processo de agregação e conflito no meio juvenil fizeram associar
intimamente os jovens à instabilidade social, à potencial ruptura das
normas socialmente estabelecidas, determinando seu ingresso na
sociologia como um “problema social”.
Esse potencial que carrega a juventude, de inovar no campo de
práticas e valores, cuja manifestação pode assumir dimensões
conflitivas, coincide com sua capacidade – politicamente das mais
relevantes – de renovação cultural da sociedade. Essa capacidade
renovadora que carrega a juventude e que consiste, digamos, num de seus
maiores trunfos políticos, se deve fundamentalmente ao caráter
transitório de sua condição enquanto momento de passagem à idade adulta.
Ao mesmo tempo, todavia, é a este seu caráter transitório que deve sua
maior debilidade, inclusive em termos políticos: a brevidade e
turbulência da experiência juvenil não permite um olhar mais aprofundado
e sistemático sobre as relações nas quais os próprios jovens se vêm
inseridos.
Em termos políticos, isso tem uma consequência significativa. Em
primeiro lugar, as ideologias juvenis – entenda-se por ideologia uma
visão de mundo não sistemática que se tem da realidade a partir de um
lugar social concreto – enfrentam enorme dificuldade de apreender o
mundo e de nele, assim, projetar-se estrategicamente. Isso equivaleria a
reconhecer a autonomia impossível da práxis juvenil, pondo em
evidência, em função disso, sua maior suscetibilidade à tutelagem e à
manipulação externa. Na prática, essa suscetibilidade se traduz,
sobretudo, na sensibilidade dos movimentos juvenis aos estímulos da
mídia, sendo frequentemente manipulados pelas classes dominantes. E
também na reverberação mais ou menos imediata da incapacidade de
organizações partidárias em refletir sobre os limites e capacidades
destes movimentos de juventude, viabilizando-os estrategicamente.
3.2 Pontos de encontro juvenis e movimentos de juventude
Importante registrar também o modo como a ansiedade, as expectativas e
as frustrações dos jovens se agregam, conformando aqueles movimentos de
dimensão coletiva que realizam concretamente a capacidade culturalmente
renovadora da práxis juvenil. Uma analogia que ilustra bem esse
processo é a da preparação de um bolo. Seu preparo adequado exige dois
elementos básicos, a saber: uma receita produzida a partir de
ingredientes combinados em proporções exatas e também a acomodação da
massa resultante dessa mistura numa assadeira. Sob calor, a massa cresce
e o bolo fica pronto.
Nesses termos, podemos considerar a ansiedade, as expectativas e as
frustrações juvenis como os ingredientes de uma receita que, sem forma
ou influência do calor dos acontecimentos, terminaria simplesmente como
uma massa espalhada. A assadeira corresponde exatamente às instituições
que canalizam e regulam os fluxos de relações sociais no meio juvenil,
contribuindo ou não para sua formatação em movimento coletivo
organizado.
As assadeiras sociais de “bolos de juventude”, digamos, são de enorme
variedade e estão geralmente associadas à responsabilidades e
compromissos socialmente atribuídos aos jovens, entre os quais se
destaca a preparação escolar, do que se depreende o papel da escola
enquanto espaço privilegiado de vivência juvenil; ou então estão
associadas ao uso do tempo livre e ao lazer, tais como a quadra, o
espaço da rua e do bairro, as lanchonetes, bares, boates, cinemas,
bailes, shows musicais, exposições e cafés. Nesses espaços, a juventude
se encontra, experimenta os limites de sociabilidade da ordem
estabelecida, desenvolve práticas e valores próprios – que se manifestam
por meio da linguagem, do vestuário, dos gostos musicais e dos padrões
de relacionamento afetivo, por exemplo – projetando papéis sociais
culturalmente inovadores.
Naqueles vários pontos de encontro a juventude compartilha suas
frustrações e ansiedades, seja para consolida-as em formas de
organização coletiva que desestabilizam a normas vigentes – num sentido
que não é necessariamente progressista, mas que pode se orientar também
pela celebração do ódio e da violência. Seja para reelaborá-las em
perspectivas conservadoras – o que inclui a canalização de suas
frustrações e inseguranças no consumo de produtos voltados ao público
jovem e que reelaboram a capacidade renovadora destas culturas juvenis
emergentes, anulando-a ou contendo-a em espaços socialmente delimitados e
em práticas tanto previsíveis quanto politicamente negociáveis. Em
outras palavras, deve-se reconhecer que a experiência juvenil pode
conduzir, também, a uma integração ao sistema de práticas e valores
imposto pela sociedade – completando dessa forma, sem “problemas”, o
processo de socialização das novas gerações.
É importante registrar que nesses processos os jovens enfrentam uma
resistência ativa, começando pelos conflitos que se estabelecem na
própria família. As expectativas e desejos que a juventude assume para
si e projeta na sociedade nem sempre coincidem com as práticas e valores
considerados os mais adequados e justos pelas gerações pregressas –
notadamente os pais. A família também projeta no jovem suas próprias
expectativas, sendo a primeira delas a de que ele representa a
possibilidade de aproveitamento de oportunidades de elevação ou
manutenção de um padrão de vida já alcançado. E para isso, investiu
tempo e recursos, a custa de sacrifícios pessoais. Quando as
expectativas e desejos dos próprios jovens se chocam com os dos adultos
(incluindo-se aí a família), temos o que se define como conflito de
gerações.
Mas não é somente em função de questões de ordem econômica ou de
prestígio que esses conflitos se estabelecem. Na sociedade (inclusive no
seio familiar) encontramos práticas e valores arraigados que, por
outras razões, podem tolher a possibilidade de vivência de uma relação
experimental com o presente. As práticas e valores conservadores e
restritivos associados a certas crenças religiosas são um exemplo disso.
O machismo também é uma variável importante. Sua influência sobre as
possibilidades de vivência da condição juvenil vem de há muito tempo:
até meados do século XIX as moças não frequentavam a escola, por
exemplo, e eram criadas desde cedo como mulheres em miniatura,
destinadas a casar, a servir ao marido, e a permanecer reclusa na esfera
familiar, alijadas do convívio social e do trabalho – atividade que
poderia lhe conferir uma margem de autonomia – restringindo-lhe o acesso
a certas condições econômicas e sociais indispensáveis ao exercício da
condição juvenil. Estes são elementos arraigados culturalmente que ainda
hoje se manifestam em maior ou menor medida.
3.3 Condições econômicas para a realização da juventude
Vimos que a juventude, definida como o direito a uma relação
experimental com o presente, carrega um potencial de renovação cultural
da sociedade e que este potencial se condensa em certos contextos
institucionais podendo, ainda que sob a resistência ativa dos adultos,
dar origem a movimentos coletivos de juventude. Isso, todavia, não
explica tudo. Falta um elemento frequentemente omitido em debates sobre a
questão da juventude, e que nos remete à questão econômica. A juventude
se define como um papel social relacionado à possibilidade de vivência
experimental com o presente na exata medida em que lhe é assegurado o
direito à desresponsabilização com o próprio sustento. Dito claramente: a
possibilidade efetiva de usufruto do direto à juventude está
intimamente associado a uma certa condição de classe.
Quando, por força das circunstâncias, alguém é obrigado a engajar-se
numa atividade profissional, seja para sustentar-se, seja para garantir o
sustento de um núcleo familiar pelo qual é responsável, então não
existe a possibilidade de uma vivência experimental com o presente, de
escolha, e de preparação para um papel futuro. As opções já estão dadas e
a margem para inovação cultural é muito pequena. Pois é exatamente o
que acontece entre as famílias economicamente menos privilegiadas –
aspecto que em nosso país encontra-se indissociavelmente atrelado à
questão étnica ou racial. Nesses casos a experiência juvenil acaba
restrita praticamente à entrada num mercado de consumo tipicamente jovem
que é particularmente voltado ao lazer e à moda e que acaba tomado como
válvula de escape de uma realidade massacrante. Na raiz desse fenômeno
encontra-se a divisão entre as classes e a exclusão social, inscritas
como traços estruturais do capitalismo.
No extremo oposto temos os filhos e filhas das famílias muito
privilegiadas. Nestes casos a condição juvenil é experimentada,
frequentemente, em situações de completa dependência econômica em
relação à família. Essa dependência, inclusive, tem se alargado
historicamente, na medida em que se alonga o período necessário a
preparação educacional para a disputa do mercado no trabalho e o
exercício de uma profissão especializada.
Essa situação de alargamento é produto de uma tendência, resultante
da pressão – sobretudo da classe média – de ampliação, para si, das
oportunidades educacionais no capitalismo, tidas erradamente, inclusive,
como condição suficiente à diminuição das igualdades sociais (é a
chamada ideologia da ascensão social). O fato é que essa pressão, sob as
restritas oportunidades de trabalho oferecidas pelo sistema, fazendo
massificar um dado nível de formação educacional, cria a necessidade
nível superior de formação como critério de recrutamento da força de
trabalho. Esse fenômeno de alargamento do tempo de escolarização adia a
entrada dos jovens de famílias privilegiadas no mercado de trabalho,
reforçando uma situação de dependência que se tem descrito como
“adolescência tardia”.
Como o próprio conceito indica, essa situação de dependência
econômica prolongada reduz a margem de autonomia do jovem, incidindo
inclusive sobre os processos de amadurecimento psicológico que envolvem a
elaboração da própria identidade. Não apenas pelos laços de dependência
emocional, que se reforçam nessa situação, mas também pelos mecanismos
de controle sobre o jovem que a família continua a dispor – inscritas na
relação de dependência econômica –, e que se traduzem na maior
possibilidade desta em regular o uso do tempo livre do jovem,
canalizando suas energias em direção à realização do projeto que ela, a
família, reserva para ele.
Isso significa, em suma, que as possibilidades de exercício efetivo
da condição jovem são restringidas por situações econômicas
desfavoráveis. Enquanto no extremo oposto, as condições econômicas para o
efetivo exercício da condição juvenil estão dadas, mas a dependência
absoluta em relação à família geram situações que são restritivas do
ponto de vista geracional: em contextos culturais menos liberais a
dependência econômica reforça os mecanismos por meio dos quais a família
se impõe como um elemento de resistência ativa à possibilidade de
experimentação e inovação cultural.
Frente a isso, poderia-se considerar que a situação econômica mais
favorável ao pleno exercício da condição juvenil, ao contrário do que se
pensa, não é uma situação de dependência absoluta em relação a família,
mas de dependência relativa. O exercício de uma atividade profissional,
desde em que caráter parcial ou provisório, permite ao jovem dispor de
recursos que pode investir conforme o critério de suas próprias
expectativas e desejos – pressupondo que sua situação econômica lhe
permita, ao mesmo tempo, completar o necessário ao seu sustento.
Em outras palavras, a situação de dependência econômica relativa
garante uma margem de autonomia, também relativa, em relação às pressões
e resistências ativas que as novas gerações sofrem dos adultos,
sobretudo no contexto familiar, potencializando a realização da
experiência juvenil entendida como momento de vinculação experimental
com o presente e como possibilidade renovação e inovação culturais.
Nesse processo, desde que garantidas certas condições institucionais –
isto é, desde que os pontos de encontro juvenil existam e que neles o
convício e a interação sejam garantidos – então aquela energia
potencialmente renovadora poderá se manifestar na forma de movimentos
coletivos de juventude.
4. Os socialistas e a juventude, a juventude e o socialismo
À luz dos elementos até aqui expostos, pode-se concluir o seguinte: o
estágio particular da vida que se define como juventude está associada a
um conjunto de direitos e deveres. Na modernidade capitalista, em
poucas palavras, estes correspondem ao direito à vivência experimental
do presente, à busca por um lugar no mundo e à elaboração da própria
identidade; mas que se realiza sob a pressão de integração definitiva na
sociedade, materializada na preparação escolar como uma obrigação ou um
dever.
Além disso, vimos que a possibilidade de experimentação, de definição
da própria identidade, e de busca por um papel na sociedade, se realiza
num contexto material e cultural concreto. Ou seja, existem certos
fatores que condicionam ou determinam a possibilidade de usufruto da
condição juvenil e da conformação de sua capacidade de renovação
cultural em movimentos coletivos. A dependência econômica relativa em
relação à família é o primeiro destes fatores. Ela permite ao jovem uma
margem de manobra em relação às pressões sociais e também o tempo livre
necessário à busca e à experimentação.
Mas essa experimentação não se realiza plenamente em escala
individual. É no convívio e na interação que os desejos, expectativas,
frustrações e insegurança são reelaborados e se materializam em
movimentos coletivos, de ordem cultural ou política, por exemplo. E para
que isso aconteça algumas condições institucionais devem ser garantidas
além das econômicas, é preciso que os jovens tenham a possibilidade de
estabelecer seus pontos de encontro. E que estes pontos comportem a
possibilidade de integração. Do contrário, o potencial de renovação
cultural se dissipa.
Frente a isso podemos, finalmente, estabelecer alguns nexos entre a
condição juvenil e o programa e estratégia socialistas. Antes de mais
nada, é preciso reconhecer que a opção por potencializar a presença e a
prática da juventude enquanto elemento culturalmente inovador pressupõe
uma opção ético-política por uma sociedade dinâmica, atravessada por
pressões renovadoras. A plena realização deste objetivo implica, em
última, numa luta pelo fim das classes sociais, ou seja, a implantação e
o aprofundamento do projeto socialista. Ao mesmo tempo, introduz neste
projeto um componente de instabilidade indispensável à sua
caracterização enquanto projeto radicalmente democrático de organização
da vida coletiva. Afinal, o socialismo não representa o fim dos
conflitos humanos, e sim uma maneira radicalmente democrática de
equacioná-los. Nessa equação deve-se preservar o papel da juventude
enquanto agente potencial de renovação cultural.
Mas não é somente do ponto de vista do programa socialista que a
juventude pode ocupar um papel importante. Na própria construção deste
projeto a juventude pode ser incorporada como elemento dinâmico. Neste
caso, cabe aos socialistas lutar para que o potencial de renovação
cultural que se opera a partir do meio juvenil se realize, sob o
capitalismo, no sentido de consolidação de uma cultura participativa e
humanista, marcada pelo respeito à diferença e pelo intransigente
combate à desigualdade e às opressões de toda ordem. Cabe aos
socialistas, ao mesmo tempo, lutar para que essas energias sejam
aproveitadas nas lutas pelo alargamento das condições sociais e
econômicas que condicionam os movimentos de renovação cultural da
sociedade.
Isso implica num duplo movimento: primeiro, reunir e organizar as
energias disponíveis no meio juvenil, procurando, a partir de uma
análise da realidade, identificar os lugares e setores da sociedade em
que o seu potencial de renovação se manifesta sob condições mais
favoráveis, sobretudo em termos econômicos e sociais. E, segundo,
aproveitar as energias já existentes neste e noutros segmentos da
sociedade para alargar as condições existentes, onde quer que estas
sejam restritivas à experiência juvenil. Tarefa esta que se desdobra em
duas frentes: a luta por dentro do Estado, traduzindo as mudanças
necessárias, por exemplo, em políticas públicas voltadas ao segmento
jovem; e também na luta por fora do Estado, reunindo energias e
exercendo pressões sem as quais nenhuma mudança significativa no plano
institucional pode efetivamente se realizar.
Carlos Henrique M. Menegozzo é sociólogo e bibliotecário, especialista em arquivologia. Dedica-se à história da esquerda e dos movimentos estudantis no Brasil nos anos 1970 e 1980, e ao tratamento de fontes documentais relacionadas a essas temáticas. Trabalha atualmente no Centro Sérgio Buarque de Holanda/FPA
* Nota do autor: Agradeço à comissão organizadora e aos
participantes do Seminário “Os Movimentos Sociais e a Luta pelo
Socialismo”, ocorrido em julho em São Paulo, onde apresentei uma
primeira versão do texto. E também à Evelize Pacheco e Joana Borges,
pela leitura crítica e contribuições.