segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Por que Luiz Inácio desagrada Caetano Veloso?

Muuuuito bom o texto... é grande mas não vão se arrepender...

Há braços de luta!


Por que Luiz Inácio desagrada Caetano Veloso?

por Marta Peres, professora da UFRJ



Grande artista, não faz falta a Caetano Veloso um diploma de nível
superior. Seus recentes comentários injuriosos a respeito do
presidente com a maior aprovação da História do Brasil são
indiscutivelmente coerentes - com sua visão de mundo, com a visão da
classe a que pertence, assim como dos meios de comunicação que as
constroem incansavelmente, bloqueando qualquer ensaio de
questionamento ao seu insistente pensamento único.

Ao se referir a Lula como ?analfabeto?, o termo está sendo utilizado
de forma equivocada, pois ?analfabetismo? significa ?não saber ler nem
escrever?. Imagino que ele esteja se remetendo, de maneira exagerada,
ao fato de Lula não ter diploma de graduação, coisa que o compositor
tampouco possui. Esse tipo de exigência não é nem mesmo cogitada ante
outros artistas geniais como Milton, Chico, Cora Coralina... Gilberto
Gil, ex-ministro do governo Lula, graduou-se, mas não em música...
?Ah, mas eles são artistas...?. E não seria a Política uma arte? Um
pouco de Platão e Aristóteles não faz mal a ninguém...

Quanto à suposta ?cafonice? de nosso presidente, situado na revista
americana Newsweek em 18° lugar entre as pessoas mais poderosas do
mundo, Pierre Bourdieu (1930-2002) nos traz uma contribuição preciosa.
De origem campesina, como Lula, o sociólogo francês criou conceitos
que desmoronam o velho chavão do ?gosto não se discute?. Para
Bourdieu, não só se deve discutir, como estudar, compreender, aquilo
que se trata de, mais que uma questão de ?classe?, uma questão de
?classe social?. Além do enorme abismo do ponto de vista propriamente
econômico, os ?gostos diferenciadores?, referentes ao ?estilo de
vida?, consistem na maior marca de violência simbólica e num
fundamental instrumento de legitimação da dominação das classes
dominadas pelas dominantes. Não somente é desigual a distribuição de
renda numa sociedade dividida em classes, mas também o acesso à
educação formal e informal - o hábito de freqüentar museus,
espetáculos de teatro, música, dança - à sofisticação do vocabulário,
às regras de etiqueta, à constituição da apresentação pessoal, dos
?modos? e atitudes corporais. Obviamente, alcançar maior poder
aquisitivo não possibilita a aquisição desse ?capital cultural?
adquirido ao longo de toda uma vida no convívio com ?outras pessoas
elegantes?, ou seja, com a ?elite?. Uma expressão precisa para
designá-las, utilizada corriqueiramente na Zona Sul do Rio, é ?gente
bonita? - como sinônimo de portadores de determinadas marcas de classe
evidentes pelo vestuário, linguajar, cabelos, corpos, modos, atitudes.
Bourdieu demonstrou os aspectos, às vezes despercebidos, da
?construção social? do gosto, seja o gosto de Caetano, das elites, dos
que gostariam de ser elite, pretendendo se distinguir da massa
supostamente ?inculta?. Em outras palavras, as classes às quais
pertencemos determinam, em grande parte, nossos critérios
aparentemente inatos do que vem a ser elegância, numa relação de
constante imitação, pelos ?cafonas?, dos considerados detentores dos
critérios de julgamento estético.

Lula não segue a corrente dos imitadores: mantém-se fiel à cafonice
que o identifica com suas origens populares. Ah, como isso incomoda...

Embora seja assistido desde tempos imemoriais, lembrando que Norbert
Elias estudou como a nobreza francesa era imitada por suas congêneres
do resto da Europa no Ancien Régime, aqui, no Brasil, o fenômeno da
distinção alcança as fronteiras do ?nojo?, das reações fisiológicas
desagradáveis, diante de tudo que possa remeter a atributos das
classes populares, tudo que venha do ?povão?.

Não é à toa que o REUNI ? Programa de Apoio a Planos de Reestruturação
e Expansão das Universidades Federais que tem como objetivo "criar
condições para a ampliação do acesso e permanência na educação
superior, no nível da graduação, pelo melhor aproveitamento da
estrutura física e de recursos humanos existentes nas Universidades
Federais" ? seja alvo de críticas ferrenhas, apesar de vir ao encontro
de demandas por mais vagas já presentes nos protestos estudantis da
França e do Brasil há quarenta anos, os quais, aqui, jamais sequer
haviam sido objeto de atenção pelos governos. A demanda por cidadania
e não por privilégios restritos é assunto que dá nojo, dá ?gastura?,
como se fala no interior do Brasil. Mas isso são outros quinhentos...

Embora o acesso universal à educação deva ser uma meta, podemos
questionar ? como muitos eminentes acadêmicos questionam ? que a
universidade seja a única fonte de conhecimento legítimo, sob o risco
de repetirmos, em outros moldes, o papel de detentora do saber
exercido pela Igreja Católica Medieval. O que seria de nós sem a
contribuição inestimável de tantos notáveis que por ela não passaram?

Pode-se argumentar, contudo, que o referido compositor não tem
preconceito de classe ou contra a falta de diploma, pois pretende
votar em Marina Silva que, como Caetano, não possui graduação, e que,
como Lula, tem origem humilde. (O curioso é que, sendo a candidata à
sucessão de Lula uma economista, dessa vez, a mesma é cobrada por não
possuir mestrado e acusada de ter lutado contra a ditadura militar:
sempre inventarão motivos contrários a políticas públicas que ferem
ideais de distinção de classe). Ao contrário do que parece, os
atributos de Marina caem como uma luva para nossa conservadora classe
média leitora do Globo e da Veja e que jamais se assumirá
preconceituosa: portar a nobre e indignada bandeira da causa verde faz
disparar sua pontuação no quesito ?elegância?. Os que se preocupam
ardentemente com a possibilidade de vida de seus netos e bisnetos são
tocados em seu íntimo pelas questões ligadas à salvação das florestas.

Só que, mais uma vez, como a História sempre ajuda a enxergar, o
buraco ? na camada de ozônio ? é mais embaixo: a destruição do planeta
é a consequência inexorável de um sistema perverso que nele vem se
instalando há alguns séculos. Ao longo de suas notáveis
transformações, atingiu um ponto em que passou a se dar conta de seu
próprio potencial de destruição e de identificar na preocupação com a
natureza uma boa ? e quem sabe, lucrativa - causa.

Do ponto de vista das chamadas ?Gerações? de Direitos Humanos, ao
longo dos desdobramentos do capitalismo, a causa ecológica nasceu como
a terceira filha. Enquanto a primeira, a segunda e a terceira gerações
são identificadas com os ideais da Revolução Francesa - Liberdade,
Igualdade e Fraternidade - a quarta, mais recente, relaciona-se a
questões da Bioética e aos movimentos de segmentos minoritários ou
discriminados da sociedade. A liberdade refere-se aos direitos civis e
políticos, chamados de ?direitos negativos?, pois limitam o poder
exorbitante do Estado, que deve deixar o indivíduo viver e atuar
politicamente. A igualdade consiste na luta pelos direitos sociais,
culturais, econômicos, e demandam uma atuação ?positiva? do Estado no
sentido de realizar ações que proporcionem condições de acesso de
todos os indivíduos à educação, saúde, moradia, assistência social,
dignidade no trabalho. Finalmente, a fraternidade esta ligada à
ecologia, à preocupação com o destino da humanidade, irmanada por sua
condição de habitante do planeta Terra.

Como se situaria o Brasil nessa História? Não vivemos mais no tempo de
Marx, das jornadas de trabalho de 18 horas que não poupavam mulheres e
crianças caindo mortas de fome ao redor das grandes máquinas sujas das
fábricas. Hoje, longos tentáculos buscam mão de obra barata como a
planta se dirige à luz do sol e os dejetos ? da poluição e os seres
humanos excluídos da participação em suas benesses - são escondidos do
campo de visão dos que têm ?bom gosto?. Depois de destruir suas
próprias florestas, os países ricos se preocupam e ditam regras da
etiqueta politicamente correta aos pobres, abraçando a ?causa
ecológica? com a mesma eloqüência que ontem defenderam que a ?mão
invisível do mercado? traria a felicidade geral. Hoje, uma mão visível
segura imponente a bandeira do orgulho verde. Porém, o corpo do qual
faz parte constitui-se de fome, miséria, doença, condições abaixo de
qualquer noção de dignidade da pessoa humana. A bandeira parece ser de
um médico, mas o sujeito que a segura é um ?elegante? monstro. Chega a
ser apelativo falar em salvar o planeta tirando de contexto uma causa
que ninguém ousará contestar. Mas que tal pesquisar casos concretos de
vínculos incontestáveis entre partidos verdes de diferentes países com
os setores mais conservadores das respectivas sociedades? Visualizando
a imagem do monstro, de braços dados com uma chiquérrima Brigitte
Bardot salvando animais, faz todo sentido. A Bela e a Fera...

De modo algum defendo qualquer teleologia e que tenhamos que passar
por fases que os outros já passaram. Nem que os sete anos de Governo
Lula tenham se proposto a enfrentar bravamente, contra tudo e contra
todos, o capitalismo que domina quase toda a superfície do planeta.
Ninguém falou em Revolução, aliás, não era esse o combinado. Apenas
assisto a um esforço hercúleo de instaurar políticas que ferem o
coração desses mecanismos de violência, real e simbólica, que o
julgamento do que é ou não cafona só vem a perpetuar, no sentido de
minimizar o enorme fosso que separa os que têm e os que não têm acesso
a conquistas históricas impreteríveis do Ocidente, independentemente
de obediência a qualquer cronologia, identificadas com os direitos
humanos: combate à fome à miséria, acesso universal à educação, à
energia elétrica, diminuição da desigualdade ímpar que nos assola.
Fraternidade, também quero, mas junto com a Liberdade, e
principalmente, o que mais nos falta, Igualdade! Não igualdade no
sentido anatômico, igualdade de condições, junto com a quarta geração.

Não indignar-se com a miséria, agarrar-se ferrenhamente a seus
privilégios, assim como espernear diante de sinais de mudança, faz
parte do aprendizado de cegueira, inércia e arrogância por que passam
nossas elites com seu gosto sofisticado. Mas ao contrário de um regime
de concordância geral, o ideal de democracia é caracterizado
justamente pela coexistência de opiniões diversas a respeito das
políticas do governo. À insatisfação proveniente de certo campo
ideológico correspondem, certamente, avanços jamais assistidos na
História do Brasil. Com vínculos ideológicos resumidos na figura de
ACM, nutridora de uma ordem social desigual desde 1500, existe uma
indiscutivelmente sincera elite baiana à qual, desagradar, é sinal de
que Lula está no caminho certo!

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