segunda-feira, 30 de julho de 2012

Juventude e socialismo: questões fundamentais

Por Carlos Henrique M. Menegozzo

1. Introdução
1.1 Juventude: um tema controverso
Se há consenso no debate sobre a questão da juventude, ele passa pelo reconhecimento da enorme controvérsia que envolve até a definição do termo. Isto, em parte, se deve e é agravado pela aparente transparência de seu conteúdo: muitos de nós já vivemos a experiência de ser jovem ou convivemos com grupos juvenis, o que faz com que todo mundo tenha uma opinião sobre o tema. De um ponto de vista geral, pode-se dizer que as várias opiniões sobre a própria definição do conceito de juventude oscilam entre dois extremos.
De um lado, há uma visão demasiado subjetivista, que entende a juventude com uma espécie de estado de espirito ou atitude diante do mundo. Materializada no culto ao corpo e em padrões de consumo, a juventude é alçada, assim, à condição de ideal para todas as idades. No extremo oposto, bastante arbitrário, as percepções e experiências específicas deste segmento da sociedade acabam ocultadas pela delimitação estanque de faixas de idade. Neste caso, ser jovem equivale a ter de 16 a 29 anos, por exemplo.
1.2 A juventude sob os olhares da esquerda
Também na política, sobretudo entre as esquerdas, as opiniões a respeito do tema são variadas. Raramente, entretanto, a discussão se pauta por uma definição qualificada do conceito. É comum, por exemplo, a associação da juventude com uma tendência natural à rebeldia e à identificação com as lutas populares. Assim como a consideração da juventude como um momento de dedicação abnegada a uma causa, o que acaba por reduzir o seu papel estratégico à rotina “tarefeira” na celebrada condição de “pau pra toda obra”.
Noutros casos, a juventude é entendida, de modo mais rigoroso, como uma etapa específica da vida, atravessada por situações concretas muito diversas – não se tratando de uma juventude genérica no singular, mas de juventudes, no plural (juventude negra, feminina, trabalhadora, etc) – e merecedora de cuidados especiais. Ocorre que a consideração das várias situações concretas em se apresenta a condição juvenil, e que reflete um entendimento mais qualificado do assunto, há anos vem sendo repetido como novidade, sem desdobramentos imediatos ou estratégicos significativos. O mais significativo desses desdobramentos corresponde, provavelmente, à acertada tradução deste entendimento mais qualificado em políticas públicas. Estas, todavia, acabam muitas vezes reduzidas a visões estritamente reformistas ou ao mero eleitoralismo: perde-se de vista a articulação entre reformas parciais e revolução.
A ausência de uma compreensão mais apurada das condições em que vive e, portanto, dos limites e potencialidades da juventude numa estratégia de transformação social, por parte das esquerdas, torna-se evidente nas declarações que se ouve quando da aparente apatia ou da explosão de movimentos juvenis. Ora a desmobilização é atribuída a nociva intervenção dos partidos, ora a uma cultura política conservadora e consumista, ora à traição das direções. Pouco se fala, por exemplo, dos fatores de ordem econômica que determinam os fluxos e refluxos de movimento. Como também falta muita autocrítica das forças políticas organizadas a respeito de sua própria incompreensão do fenômeno.
Ao contrário, frente às explosões de movimento, não tardam em se manifestar as leituras segundo as quais a tendência à rebeldia é natural da juventude. Bem como as posturas autocelebratórias por parte das forças políticas organizadas que, traçando paralelos diretos com explosões de movimento do passado – aí as referências sobre 1968 e sobre os caras-pintada em 1992 são obrigatórias – procuram extrair, de modo oportunista, algum saldo político de uma onda de protestos para cuja emergência deram pouca ou nenhuma contribuição efetiva. Essas explosões têm sido muito mais fruto de uma combinação de fatores circunstanciais onde as forças organizadas têm cumprido um papel passivo, que o resultado de uma construção efetiva desde as bases.
Tais considerações nos levam a constatar que falta às esquerdas um entendimento mais elaborado a respeito da condição juvenil. O que se deve considerar como algo da maior gravidade, já que este entendimento é imprescindível não apenas a uma percepção mais completa dos reais limites e possibilidades que oferece a juventude do ponto de vista da luta pelo socialismo; mas também à potencialização dessa capacidade transformadora por meio de ações que não passam, necessariamente, pelos próprios movimentos juvenis.
Mais que um exercício meramente acadêmico, portanto, a tarefa de estabelecer uma rigorosa definição para o conceito de juventude compreende um esforço de análise da realidade concreta, imprescindível a toda a ação transformadora que, dialogando com este segmento específico da sociedade, se pretenda politicamente eficaz.
2.Conceito de juventude
2.1 Juventude como etapa transitória da vida
Não se pode negar que a vida humana é marcada por um ciclo que se inicia com o nascimento e que se encerra com a morte. E que em toda e qualquer cultura, este ciclo vital é segmentado em etapas diferenciadas de desenvolvimento biológico e social, marcadas em maior ou menor grau por um período de imaturidade, de maturidade, e de decaimento ou inatividade. Apesar das polêmicas existentes em torno do conceito de juventude, uma ideia fundamental, e relativamente difundida, é de que a juventude corresponde a um momento intermediário entre duas etapas deste ciclo da vida – mais precisamente ente a imaturidade e a maturidade plena, ou entre a infância e a fase adulta.
Os critérios que caracterizam essa passagem, todavia – e aí reside a polêmica de um debate mais qualificado – não podem ser apreendidos em toda a sua complexidade a partir da redução do conceito de juventude a um estado de espírito ou uma atitude diante do mundo; a faixas etárias estanques ou a um comportamento, supostamente natural, de rebeldia e identificação com as causas populares. Os critérios que definem a condição juvenil são muitos e envolvem fatores biológicos, psicológicos, econômicos, educacionais e culturais. A ênfase num ou outro aspecto varia conforme as visões adotadas em diferentes campos do conhecimento científico.
Em vertentes da medicina ocidental moderna, por exemplo, a ênfase recai no amadurecimento biológico do organismo humano perspectiva à qual corresponde, mais precisamente, o conceito de puberdade. Na psicologia, por seu turno, esta fase de transição é associada mais ao desenvolvimento de aspectos cognitivos ou de certas faculdades mentais e corresponde, geralmente, ao conceito de adolescência. Finalmente, esta etapa intermediária pode não estar associada a critérios biológicos ou psicológicos, mas a um conjunto determinado papéis – um conjunto de direitos e deveres social e historicamente estabelecidos – que são reservados a grupos sociais específicos, e que se encontra mais comumente associada ao conceito de juventude.
2.2 A condição juvenil de um ponto de vista totalizante
A visão especializada que cada uma dessas áreas oferece certamente contribui para um entendimento mais aprofundado de cada aspecto do complexo fenômeno da juventude. Entretanto, não se pode perder de vista uma visão de conjunto dessa passagem. Em função disso é que um entendimento mais completo da condição juvenil pressupõe a adoção de um ponto de vista totalizante. Um ponto de vista que leva em consideração a complexa interação de fatores de ordem biológica, psicológica, educacional, econômica e social derivados do reconhecimento da especificidade desta etapa transitória da vida.
São vários os pontos a partir dos quais podemos avançar na caracterização da condição juvenil, sendo um deles o que corresponde ao esforço por descrever o conjunto de direitos e deveres que singulariza a condição juvenil – entendendo este conjunto como uma construção histórica e social que se faz sobre processos de ordem biológica e psicológica, a ele subjacentes. Mas é preciso reconhecer que essa tarefa é das mais difíceis. Não que seja impossível empreendê-la. É que se trata, primeiramente, da descrição de meias medidas postas entre situações e papéis sociais mais facilmente identificáveis porque definidos como extremos: completa imaturidade e maturidade plena. Mas essa dificuldade se deve também ao fato de que tais direitos e deveres são estabelecidos socialmente em condições históricas determinadas. Isto quer dizer que o seu conteúdo pode variar de uma sociedade para outra bem como numa mesma sociedade ao longo do tempo.
Esta necessária relativização histórica, vale dizer, não impede que se descreva minuciosamente os fatores que concretamente envolvem a condição juvenil. Apenas exige que essa descrição deve se dar sempre com referência a um contexto social concreto e levando em consideração, insistindo num ponto de vista totalizante, fatores como situação de classe, condição de gênero e identidade étnica, por exemplo. E o contexto social concreto no qual nos inserimos é o das modernas sociedades capitalistas.
3. Juventude no capitalismo: situação e potencial político
3.1 Relação experimental com o presente e capacidade de renovação cultural
Um primeiro traço marcante da condição juvenil no capitalismo corresponde àquilo que na sociologia tem sido definido como uma espécie de moratória em relação a certas obrigações consideradas próprias da idade adulta, tais como exercício de uma atividade profissional em caráter definitivo, a responsabilidade pelo próprio sustento, além da constituição e sustento de um núcleo familiar autônomo.
Essa moratória abre a possibilidade da vivência de uma relação provisória ou experimental com o presente marcada pela busca do próprio papel e lugar no mundo, pela preparação para o exercício deste papel e, portanto, pelo amadurecimento da própria identidade. Isso não significa que a juventude corresponda a uma fase de inteira liberdade. Ao contrário, sobre ela recaem pressões e responsabilidades específicas. A pressão pela necessária definição de um papel e de um lugar no mundo é a primeira delas.
Esta combinação particular de fatores encerra um potencial explosivo, que corresponde à chamada crise da juventude. Em termos gerais esta crise consiste na incompatibilidade entre expectativas e aspirações alimentadas nesta fase de busca e de preparação, com as possibilidades reais de desenvolvimento pessoal e profissional oferecidas nos limites da ordem estabelecida. As frustrações advindas dessa incompatibilidade, não raro, se combinam com conflitos de ordem geracional, isto é, com o confronto entre as próprias aspirações e expectativas e aquelas projetadas sobre o jovem pelas gerações pregressas, notadamente pelos pais.
Isso se combina também com a insegurança e a ansiedade derivadas da impossibilidade de ocupação de qualquer espaço na sociedade. Nas formações modernas capitalistas, as relações de produção são reguladas pelas leis de mercado, não havendo papéis sociais reservados os quais aqueles reconhecidos como jovens devam assumir através de uma transição institucionalizada em ritos de passagem, como as provas de força e resistência em sociedades indígenas, por exemplo. Dito claramente: a juventude nas modernas sociedades capitalistas vivem uma insegurança advinda do risco do desemprego.
Ansiosos e inseguros na busca pela definição de seu papel na sociedade, os jovens procuram agregar-se em torno de afinidades, adotando valores e práticas próprios. Nesse contexto, os jovens tornam-se uma força potencialmente disponível a movimentos que ofereçam possibilidades de identificação e de ocupação efetiva de um papel na sociedade – o que pode ocorrer com movimentos transformadores ou conservadores (vide, por exemplo, a experiência das juventudes nazista e fascista nos anos 1930 e 1940). As tensões e rupturas envolvidas nesse processo de agregação e conflito no meio juvenil fizeram associar intimamente os jovens à instabilidade social, à potencial ruptura das normas socialmente estabelecidas, determinando seu ingresso na sociologia como um “problema social”.
Esse potencial que carrega a juventude, de inovar no campo de práticas e valores, cuja manifestação pode assumir dimensões conflitivas, coincide com sua capacidade – politicamente das mais relevantes – de renovação cultural da sociedade. Essa capacidade renovadora que carrega a juventude e que consiste, digamos, num de seus maiores trunfos políticos, se deve fundamentalmente ao caráter transitório de sua condição enquanto momento de passagem à idade adulta. Ao mesmo tempo, todavia, é a este seu caráter transitório que deve sua maior debilidade, inclusive em termos políticos: a brevidade e turbulência da experiência juvenil não permite um olhar mais aprofundado e sistemático sobre as relações nas quais os próprios jovens se vêm inseridos.
Em termos políticos, isso tem uma consequência significativa. Em primeiro lugar, as ideologias juvenis – entenda-se por ideologia uma visão de mundo não sistemática que se tem da realidade a partir de um lugar social concreto – enfrentam enorme dificuldade de apreender o mundo e de nele, assim, projetar-se estrategicamente. Isso equivaleria a reconhecer a autonomia impossível da práxis juvenil, pondo em evidência, em função disso, sua maior suscetibilidade à tutelagem e à manipulação externa. Na prática, essa suscetibilidade se traduz, sobretudo, na sensibilidade dos movimentos juvenis aos estímulos da mídia, sendo frequentemente manipulados pelas classes dominantes. E também na reverberação mais ou menos imediata da incapacidade de organizações partidárias em refletir sobre os limites e capacidades destes movimentos de juventude, viabilizando-os estrategicamente.
3.2 Pontos de encontro juvenis e movimentos de juventude
Importante registrar também o modo como a ansiedade, as expectativas e as frustrações dos jovens se agregam, conformando aqueles movimentos de dimensão coletiva que realizam concretamente a capacidade culturalmente renovadora da práxis juvenil. Uma analogia que ilustra bem esse processo é a da preparação de um bolo. Seu preparo adequado exige dois elementos básicos, a saber: uma receita produzida a partir de ingredientes combinados em proporções exatas e também a acomodação da massa resultante dessa mistura numa assadeira. Sob calor, a massa cresce e o bolo fica pronto.
Nesses termos, podemos considerar a ansiedade, as expectativas e as frustrações juvenis como os ingredientes de uma receita que, sem forma ou influência do calor dos acontecimentos, terminaria simplesmente como uma massa espalhada. A assadeira corresponde exatamente às instituições que canalizam e regulam os fluxos de relações sociais no meio juvenil, contribuindo ou não para sua formatação em movimento coletivo organizado.
As assadeiras sociais de “bolos de juventude”, digamos, são de enorme variedade e estão geralmente associadas à responsabilidades e compromissos socialmente atribuídos aos jovens, entre os quais se destaca a preparação escolar, do que se depreende o papel da escola enquanto espaço privilegiado de vivência juvenil; ou então estão associadas ao uso do tempo livre e ao lazer, tais como a quadra, o espaço da rua e do bairro, as lanchonetes, bares, boates, cinemas, bailes, shows musicais, exposições e cafés. Nesses espaços, a juventude se encontra, experimenta os limites de sociabilidade da ordem estabelecida, desenvolve práticas e valores próprios – que se manifestam por meio da linguagem, do vestuário, dos gostos musicais e dos padrões de relacionamento afetivo, por exemplo – projetando papéis sociais culturalmente inovadores.
Naqueles vários pontos de encontro a juventude compartilha suas frustrações e ansiedades, seja para consolida-as em formas de organização coletiva que desestabilizam a normas vigentes – num sentido que não é necessariamente progressista, mas que pode se orientar também pela celebração do ódio e da violência. Seja para reelaborá-las em perspectivas conservadoras – o que inclui a canalização de suas frustrações e inseguranças no consumo de produtos voltados ao público jovem e que reelaboram a capacidade renovadora destas culturas juvenis emergentes, anulando-a ou contendo-a em espaços socialmente delimitados e em práticas tanto previsíveis quanto politicamente negociáveis. Em outras palavras, deve-se reconhecer que a experiência juvenil pode conduzir, também, a uma integração ao sistema de práticas e valores imposto pela sociedade – completando dessa forma, sem “problemas”, o processo de socialização das novas gerações.
É importante registrar que nesses processos os jovens enfrentam uma resistência ativa, começando pelos conflitos que se estabelecem na própria família. As expectativas e desejos que a juventude assume para si e projeta na sociedade nem sempre coincidem com as práticas e valores considerados os mais adequados e justos pelas gerações pregressas – notadamente os pais. A família também projeta no jovem suas próprias expectativas, sendo a primeira delas a de que ele representa a possibilidade de aproveitamento de oportunidades de elevação ou manutenção de um padrão de vida já alcançado. E para isso, investiu tempo e recursos, a custa de sacrifícios pessoais. Quando as expectativas e desejos dos próprios jovens se chocam com os dos adultos (incluindo-se aí a família), temos o que se define como conflito de gerações.
Mas não é somente em função de questões de ordem econômica ou de prestígio que esses conflitos se estabelecem. Na sociedade (inclusive no seio familiar) encontramos práticas e valores arraigados que, por outras razões, podem tolher a possibilidade de vivência de uma relação experimental com o presente. As práticas e valores conservadores e restritivos associados a certas crenças religiosas são um exemplo disso. O machismo também é uma variável importante. Sua influência sobre as possibilidades de vivência da condição juvenil vem de há muito tempo: até meados do século XIX as moças não frequentavam a escola, por exemplo, e eram criadas desde cedo como mulheres em miniatura, destinadas a casar, a servir ao marido, e a permanecer reclusa na esfera familiar, alijadas do convívio social e do trabalho – atividade que poderia lhe conferir uma margem de autonomia – restringindo-lhe o acesso a certas condições econômicas e sociais indispensáveis ao exercício da condição juvenil. Estes são elementos arraigados culturalmente que ainda hoje se manifestam em maior ou menor medida.
3.3 Condições econômicas para a realização da juventude
Vimos que a juventude, definida como o direito a uma relação experimental com o presente, carrega um potencial de renovação cultural da sociedade e que este potencial se condensa em certos contextos institucionais podendo, ainda que sob a resistência ativa dos adultos, dar origem a movimentos coletivos de juventude. Isso, todavia, não explica tudo. Falta um elemento frequentemente omitido em debates sobre a questão da juventude, e que nos remete à questão econômica. A juventude se define como um papel social relacionado à possibilidade de vivência experimental com o presente na exata medida em que lhe é assegurado o direito à desresponsabilização com o próprio sustento. Dito claramente: a possibilidade efetiva de usufruto do direto à juventude está intimamente associado a uma certa condição de classe.
Quando, por força das circunstâncias, alguém é obrigado a engajar-se numa atividade profissional, seja para sustentar-se, seja para garantir o sustento de um núcleo familiar pelo qual é responsável, então não existe a possibilidade de uma vivência experimental com o presente, de escolha, e de preparação para um papel futuro. As opções já estão dadas e a margem para inovação cultural é muito pequena. Pois é exatamente o que acontece entre as famílias economicamente menos privilegiadas – aspecto que em nosso país encontra-se indissociavelmente atrelado à questão étnica ou racial. Nesses casos a experiência juvenil acaba restrita praticamente à entrada num mercado de consumo tipicamente jovem que é particularmente voltado ao lazer e à moda e que acaba tomado como válvula de escape de uma realidade massacrante. Na raiz desse fenômeno encontra-se a divisão entre as classes e a exclusão social, inscritas como traços estruturais do capitalismo.
No extremo oposto temos os filhos e filhas das famílias muito privilegiadas. Nestes casos a condição juvenil é experimentada, frequentemente, em situações de completa dependência econômica em relação à família. Essa dependência, inclusive, tem se alargado historicamente, na medida em que se alonga o período necessário a preparação educacional para a disputa do mercado no trabalho e o exercício de uma profissão especializada.
Essa situação de alargamento é produto de uma tendência, resultante da pressão – sobretudo da classe média – de ampliação, para si, das oportunidades educacionais no capitalismo, tidas erradamente, inclusive, como condição suficiente à diminuição das igualdades sociais (é a chamada ideologia da ascensão social). O fato é que essa pressão, sob as restritas oportunidades de trabalho oferecidas pelo sistema, fazendo massificar um dado nível de formação educacional, cria a necessidade nível superior de formação como critério de recrutamento da força de trabalho. Esse fenômeno de alargamento do tempo de escolarização adia a entrada dos jovens de famílias privilegiadas no mercado de trabalho, reforçando uma situação de dependência que se tem descrito como “adolescência tardia”.
Como o próprio conceito indica, essa situação de dependência econômica prolongada reduz a margem de autonomia do jovem, incidindo inclusive sobre os processos de amadurecimento psicológico que envolvem a elaboração da própria identidade. Não apenas pelos laços de dependência emocional, que se reforçam nessa situação, mas também pelos mecanismos de controle sobre o jovem que a família continua a dispor – inscritas na relação de dependência econômica –, e que se traduzem na maior possibilidade desta em regular o uso do tempo livre do jovem, canalizando suas energias em direção à realização do projeto que ela, a família, reserva para ele.
Isso significa, em suma, que as possibilidades de exercício efetivo da condição jovem são restringidas por situações econômicas desfavoráveis. Enquanto no extremo oposto, as condições econômicas para o efetivo exercício da condição juvenil estão dadas, mas a dependência absoluta em relação à família geram situações que são restritivas do ponto de vista geracional: em contextos culturais menos liberais a dependência econômica reforça os mecanismos por meio dos quais a família se impõe como um elemento de resistência ativa à possibilidade de experimentação e inovação cultural.
Frente a isso, poderia-se considerar que a situação econômica mais favorável ao pleno exercício da condição juvenil, ao contrário do que se pensa, não é uma situação de dependência absoluta em relação a família, mas de dependência relativa. O exercício de uma atividade profissional, desde em que caráter parcial ou provisório, permite ao jovem dispor de recursos que pode investir conforme o critério de suas próprias expectativas e desejos – pressupondo que sua situação econômica lhe permita, ao mesmo tempo, completar o necessário ao seu sustento.
Em outras palavras, a situação de dependência econômica relativa garante uma margem de autonomia, também relativa, em relação às pressões e resistências ativas que as novas gerações sofrem dos adultos, sobretudo no contexto familiar, potencializando a realização da experiência juvenil entendida como momento de vinculação experimental com o presente e como possibilidade renovação e inovação culturais. Nesse processo, desde que garantidas certas condições institucionais – isto é, desde que os pontos de encontro juvenil existam e que neles o convício e a interação sejam garantidos – então aquela energia potencialmente renovadora poderá se manifestar na forma de movimentos coletivos de juventude.
4. Os socialistas e a juventude, a juventude e o socialismo
À luz dos elementos até aqui expostos, pode-se concluir o seguinte: o estágio particular da vida que se define como juventude está associada a um conjunto de direitos e deveres. Na modernidade capitalista, em poucas palavras, estes correspondem ao direito à vivência experimental do presente, à busca por um lugar no mundo e à elaboração da própria identidade; mas que se realiza sob a pressão de integração definitiva na sociedade, materializada na preparação escolar como uma obrigação ou um dever.
Além disso, vimos que a possibilidade de experimentação, de definição da própria identidade, e de busca por um papel na sociedade, se realiza num contexto material e cultural concreto. Ou seja, existem certos fatores que condicionam ou determinam a possibilidade de usufruto da condição juvenil e da conformação de sua capacidade de renovação cultural em movimentos coletivos. A dependência econômica relativa em relação à família é o primeiro destes fatores. Ela permite ao jovem uma margem de manobra em relação às pressões sociais e também o tempo livre necessário à busca e à experimentação.
Mas essa experimentação não se realiza plenamente em escala individual. É no convívio e na interação que os desejos, expectativas, frustrações e insegurança são reelaborados e se materializam em movimentos coletivos, de ordem cultural ou política, por exemplo. E para que isso aconteça algumas condições institucionais devem ser garantidas além das econômicas, é preciso que os jovens tenham a possibilidade de estabelecer seus pontos de encontro. E que estes pontos comportem a possibilidade de integração. Do contrário, o potencial de renovação cultural se dissipa.
Frente a isso podemos, finalmente, estabelecer alguns nexos entre a condição juvenil e o programa e estratégia socialistas. Antes de mais nada, é preciso reconhecer que a opção por potencializar a presença e a prática da juventude enquanto elemento culturalmente inovador pressupõe uma opção ético-política por uma sociedade dinâmica, atravessada por pressões renovadoras. A plena realização deste objetivo implica, em última, numa luta pelo fim das classes sociais, ou seja, a implantação e o aprofundamento do projeto socialista. Ao mesmo tempo, introduz neste projeto um componente de instabilidade indispensável à sua caracterização enquanto projeto radicalmente democrático de organização da vida coletiva. Afinal, o socialismo não representa o fim dos conflitos humanos, e sim uma maneira radicalmente democrática de equacioná-los. Nessa equação deve-se preservar o papel da juventude enquanto agente potencial de renovação cultural.
Mas não é somente do ponto de vista do programa socialista que a juventude pode ocupar um papel importante. Na própria construção deste projeto a juventude pode ser incorporada como elemento dinâmico. Neste caso, cabe aos socialistas lutar para que o potencial de renovação cultural que se opera a partir do meio juvenil se realize, sob o capitalismo, no sentido de consolidação de uma cultura participativa e humanista, marcada pelo respeito à diferença e pelo intransigente combate à desigualdade e às opressões de toda ordem. Cabe aos socialistas, ao mesmo tempo, lutar para que essas energias sejam aproveitadas nas lutas pelo alargamento das condições sociais e econômicas que condicionam os movimentos de renovação cultural da sociedade.
Isso implica num duplo movimento: primeiro, reunir e organizar as energias disponíveis no meio juvenil, procurando, a partir de uma análise da realidade, identificar os lugares e setores da sociedade em que o seu potencial de renovação se manifesta sob condições mais favoráveis, sobretudo em termos econômicos e sociais. E, segundo, aproveitar as energias já existentes neste e noutros segmentos da sociedade para alargar as condições existentes, onde quer que estas sejam restritivas à experiência juvenil. Tarefa esta que se desdobra em duas frentes: a luta por dentro do Estado, traduzindo as mudanças necessárias, por exemplo, em políticas públicas voltadas ao segmento jovem; e também na luta por fora do Estado, reunindo energias e exercendo pressões sem as quais nenhuma mudança significativa no plano institucional pode efetivamente se realizar.

Carlos Henrique M. Menegozzo é sociólogo e bibliotecário, especialista em arquivologia. Dedica-se à história da esquerda e dos movimentos estudantis no Brasil nos anos 1970 e 1980, e ao tratamento de fontes documentais relacionadas a essas temáticas. Trabalha atualmente no Centro Sérgio Buarque de Holanda/FPA



* Nota do autor: Agradeço à comissão organizadora e aos participantes do Seminário “Os Movimentos Sociais e a Luta pelo Socialismo”, ocorrido em julho em São Paulo, onde apresentei uma primeira versão do texto. E também à Evelize Pacheco e Joana Borges, pela leitura crítica e contribuições.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Nova Carreira Docente das Ifes é uma afronta ao bom-senso, à pesquisa e à inteligência

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No começo do Governo Lula, os salários dos professores das Universidades Federais estavam muito defasados. Depois de 8 anos de acocho e abandono das Ifes, no Governo Fernando Henrique, esperava-se que as coisas melhorassem com Lula.

Durante o Governo atual, a recuperação da universidade brasileira foi visível. Muitos concursos foram feitos, inclusive para cobrir as milhares de aposentadorias dos anos anteriores, e chegou-se finalmente a uma fórmula para contratação, que seria baseada na produtividade da Universidade, que é o chamado professor-equivalente. Mesmo que os critérios só levem em consideração a formação de alunos, foi um grande avanço ao jogo de contratações que sempre tivemos, onde o Ministro definia a quantidade de docentes a ser contratada, fazendo com que a amizade valesse mais do que o mérito. A expansão das universidades foi excepcional, especialmente fora das grandes capitais.

Mas um dos principais problemas simplesmente não foi enfrentado, que é a baixa produtividade de muitas Universidades, e o salário muito defasado em relação a qualquer outra categoria do serviço público federal. Para se ter uma idéia do que estou falando, e muitos acharem que os professores ganham muito, o salário de um professor Dedicação Exclusiva, Adjunto 4, com doutorado, hoje é de R$ 7.100,00 bruto (incluído gratificações). Veja que não estou falando em começo de carreira, e sim em alguém que já está quase no topo dela, com muito tempo de casa, e no máximo da qualificação. Os outros concursos federais, em sua grande maioria, paga muito mais do que isso para um graduado.

No caso da carreira docente, tivemos o enfraquecimento da discussão com a divisão sindical entre Andes e Proifes. Para quem não sabe, o Sindicato Nacional é o Andes, mas que não conseguia legitimidade junto à categoria. Com isso se formou o Proifes, cuja idéia era a de discutir essa nova realidade com o Governo. Mas o que se viu foi um grupo de sindicalistas abduzidos e submissos ao Governo, que foram enrolados e prejudicaram todo o processo de discussão salarial.

Os professores receberam um aumento muito pequeno, que mal cobriu a inflação do período de 8 anos do Governo Lula, com uma promessa de envio de um novo plano de carreiras para os docentes. Esta longa explanação inicial foi apenas para situar o leitor.

Eis que o Governo divulgou seu Projeto de Lei para a carreira docente. O texto é uma aberração ao bom senso de qualquer negociação. (veja no slide acima.

Primeiro que parte do princípio que todo professor trabalha muito pouco. Diz que a partir de agora, para conseguir progredir na carreira será preciso trabalhar o dobro (ou mais do que isso), e que fazer parte da pós-graduação não vale quase nada.

Segundo, que não há quase aumento salarial. Pede-se para trabalhar muito mais, para ganhar praticamente a mesma coisa. Aquele professor Adjunto 4 que falei antes, que ganha hoje R$ 7.100,00, passa a ganhar R$ 7.900,00.

Você pode pensar, ele está ganhando 10% a mais, não é bom?

Vamos entender como funciona hoje o regime de trabalho na Universidade.

Na prática temos dois grupos de professores. O de 20 horas e o de 40 horas (a DE aí incluída). Para o segundo grupo, exige-se que o docente ministre 4 turmas (graduação/mestrado/doutorado) ou que este tenha pesquisa aprovada, e aí reduz sua carga horária para 2 turmas no semestre. Em alguns departamentos a carga é bem maior, e em outros é verdade que é menor, e o docente sem pesquisa fica com apenas 3 turmas, mas aí a discussão é a falta de controle.

No meu caso, eu sou Coordenador de Curso (pela legislação teria carga horária de sala de aula de uma turma), tenho pesquisa aprovada, e estou com 3 turmas, sendo duas na graduação e uma na pós.

Pelo novo Projeto de Lei, para o professor conseguir progredir, ele terá que dar no mínimo 3 turmas na graduação. Como ele precisa estar na pós, pois também não progride, e a pós exige uma turma no mínimo por ano, além da pesquisa aprovada, na prática os professores darão quase o dobro de aulas se quiserem progredir na carreira.

Em outras palavras, estão querendo que os professores trabalhem o dobro para ganharem quase a mesma coisa. Não estão partindo apenas do pressuposto de que trabalham pouco, mas também do que são desprovidos de inteligência.

A parte boa é que criou mais uma categoria de progressão, a de professor sênior, mas não reconhece os casos onde professores já se dedicaram, e ficaram por muito tempo parados por falta de opção de progressão. Ao invés de manter a distância para o topo da carreira dos atuais, quer aumentar ainda mais, fazendo com que professores que sejam adjunto há tempos fique na mesma situação de quem entrou quase agora.

Aqueles que me conhecem sabem que sou um defensor da docência e da sala de aula. É algo que me dá grande realização pessoal, e gosto muito mais da graduação do que da pós-graduação, mas este projeto é um escárnio. É algo que não dá nem para começar a discutir.

Ataca frontalmente a pesquisa no início da carreira, e imputa à universidade brasileira a idéia de que deve virar um escolão de terceiro grau.

O pior é ver que os professores estão totalmente desmobilizados da discussão sobre a carreira, e não há muito gás das associações para mudar esta situação. Por sua vez, a Andifes se faz de morta e batem continência para o Governo em qualquer situação.

Com este cenário, onde reitores e dirigentes sindicais batem palmas para o Governo em qualquer circunstância, a submissão é o carro-chefe de qualquer discussão, e inevitavelmente o professor será prejudicado.


Fonte: http://acertodecontas.blog.br/educacao/nova-carreira-docente-das-ifes-uma-afronta-ao-bom-senso-e-pesquisa/

O que é que a PM bahiana (não) tem?

Por Luiz Eduardo Soares*

Mais uma vez, o Brasil discute segurança pública na crise. A Bahia está convulsionada e a consciência nacional contempla o enigma sob fogo cruzado. PM em greve, selvageria nas ruas, saques, medo, mortes. Cenário para músculos e paixões, pouco afeto à inteligência. Na crise, quem manda é a crise, com sua dinâmica inconstante e imprevisível. A questão corrente é: o que fazer, agora? Quando o doente está na UTI, a urgência exige mobilização de todos os recursos disponíveis para salvá-lo. Não é momento para seminários e filosofia. Entretanto, será preciso atravessar o dia seguinte com os olhos postos no futuro e a pergunta decisiva: o que fazer para evitar crises cíclicas desse porte? O que as motiva? Como reverter suas causas? Já houve dezenas como esta, nos últimos vinte anos.

O governo estadual denuncia o vandalismo da insurreição armada e tenta reafirmar sua autoridade. A União presta a assistência possível na emergência, deslocando tropas e o ministro da Justiça. A categoria rebelada denuncia salários indignos e condições de trabalho aviltantes. Critica a omissão dos poderes públicos. Aponta a falta de perspectivas, na medida em que o Congresso se esquiva e não vota a PEC-300, que criaria um piso salarial nacional, com base no que paga o DF. Parlamentares e governos estaduais contra-argumentam, indicando as limitações orçamentárias: a magnitude da reivindicação corporativa expressa na PEC é tal que, aprovada e aplicada, quebraria os Estados.

O que dizer sobre esse vozerio desencontrado, cheio de som e fúria? Todos têm razão; ninguém tem razão. Explosões violentas são inaceitáveis; condições trabalhistas ultrajantes, também. Alternativas são indispensáveis, mas têm de ser realistas e viáveis. Quem as negociará, em nome da massa policial? Quem gritar mais alto na praça pública? Quem comandar nas ruas um movimento que chantageia o governo e o obriga a ceder ao lider de ocasião, sem organicidade representativa? Quem dispuser de carisma e audácia para sensibilizar assembléias, pavimentando carreiras político-partidárias posteriores, sem qualquer compromisso com a reforma da segurança no país e os mais elevados interesses da sociedade e das instituições? Essa tem sido a via brasileira para a selvageria despolitizada e o oportunismo de demagogos, que não enxergam um milímetro além do corporativismo mais estreito, fazendo eco à insensibilidade das autoridades e à apatia governamental. A alternativa a esse mundo desastroso é a sindicalização, não dos servidores das PMs tais como elas existem, o que seria impraticável e inconstitucional, mas dos membros de uma organização de novo tipo, regida por novos marcos constitucionais. Quando trabalhadores sentem-se oprimidos, não encontram canais de participação, não têm acesso a instrumentos de associação e representação, a energia represada transborda e se converte em combustível de explosões que produzem efeitos negativos para a sociedade, governos e a própria categoria profissional. Sem sindicatos, com associações semi-clandestinas e mutiladas, os trabalhadores se dividem, não acumulam experiência, não estabelecem negociações regulares, não amadurecem, politicamente, e terminam envolvidos em movimentos disruptivos nos quais destacam-se os mais impetuosos, cuja liderança negativa acaba sendo fortalecida por governantes acuados, os quais, tendo negligenciado entendimentos orgânicos, cedem às circunstâncias e recuam, na emergência.

Mas há pressupostos a esclarecer para que minha análise seja compreendida.

Na raiz do caos está a arquitetura institucional da segurança pública legada pela ditadura, que passou intocada pela transicão democrática, encontrou abrigo na Constituição e permanece excluída da agenda pública. O artigo 144 atribui, em matéria de segurança, grande responsabilidade aos estados e suas polícias, cujo ciclo de trabalho é, irracionalmente, dividido entre militares e civis; confere papel apenas coadjuvante à União e esquece dos municípios, na contramão do que ocorre com as demais políticas públicas. As PMs são definidas como força reserva do Exército e submetidas a um modelo organizacional concebido à sua imagem e semelhança. Por isso, têm até 13 níveis hierárquicos, uma estrutura fortemente verticalizada e rígida, e regimentos disciplinares próprios, cuja constitucionalidade é, aliás, no caso das PMs, mais do que duvidosa. A boa forma de uma organização é aquela que melhor serve ao cumprimento de suas funções. As características organizacionais do Exército atendem à sua missão constitucional, porque tornam possível o “pronto emprego”, qualidade essencial às ações bélicas destinadas à defesa nacional. Nesse contexto, entende-se o veto à sindicalização.

A missão das polícias no Estado democrático de direito é inteiramente diferente daquela que cabe ao Exército. O dever das polícias é prover segurança aos cidadãos, garantindo o cumprimento da Lei, ou seja, protegendo seus direitos e liberdades contra eventuais transgressões que os violem. No repertório cotidiano das atividades das PMs, confrontos armados que exigem pronto-emprego representam menos de 1%. Não faz sentido estruturar toda uma organização para atender a 1% de suas ações. Para estas, bastam unidades especiais, configuradas para tais finalidades. O funcionamento usual das instituições policiais com presença uniformizada e ostensiva nas ruas, cujos propósitos são sobretudo preventivos, requer, dada a variedade, a complexidade e o dinamismo dos problemas a superar, os seguintes atributos: descentralização; valorização do trabalho na ponta; flexibilidade no processo decisório nos limites da legalidade, do respeito aos direitos humanos e dos princípios internacionalmente concertados que regem o uso comedido da força; plasticidade adaptativa às especificidades locais; capacidade de interlocução, liderança, mediação e diagnóstico; liberdade para adoção de iniciativas que mobilizem outros segmentos da corporação e intervenções governamentais inter-setoriais. Idealmente, o(a) policial na esquina é um(a) micro-gestor(a) da segurança em escala territorial limitada com amplo acesso à comunicação intra e extra-institucional, de corte horizontal e transversal.

Engana-se quem acredita que mais rigor hierárquico, mais centralização, menos autonomia na ponta e regimentos mais duros garantem mais controle interno, menos corrupção, desmandos e brutalidade. Se fosse assim, nossas polícias militares seriam campeãs de virtude. Pelo contrário, sacrificamos a eficiência no altar da disciplina para colher tempestades e saldos negativos em todos os fronts.

Não há nenhuma razão para que as PMs copiem o modelo organizacional do Exército, o que não as impediria, necessariamente, de adotar elementos da estética, da ética e da ritualística militar. Nesse novo contexto, a sindicalização tornar-se-ia legal e legítima. Quem teme sindicatos e supõe possível manter a ordem reprimindo demandas dos trabalhadores, proibindo sua organização, não compreende a história social e as lições que as lutas trabalhistas nos ensinaram. Não entende que o veto à organização provoca efeitos perversos para todos e planta uma bomba de efeito retardado sob nossos pés.

Eis aí, portanto, mais uma razão para rever o artigo 144 da Constituição e para buscar um consenso nacional mínimo em torno de uma arquitetura institucional alternativa e de um outro modelo policial. Em benefício dos policiais e da eficiência na provisão de segurança pública, que interessa ao conjunto da sociedade, sobretudo aos mais pobres e vulneráveis.

*Luiz Eduardo Soares é Antropólogo, escritor, ex-secretário nacional de segurança pública


Fonte: http://www.luizeduardosoares.com/?p=829

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Militares pedem que Dilma desautorize ministras

Brasília - A presidenta Dilma Rousseff, recebe delegação brasileira dos atletas medalhistas dos 5º Jogos Mundiais Militares Rio 2011, no Palácio do Planalto . Foto: José Cruz/ABr

Declarações das ministras Mária do Rosário (Direitos Humanos) e Eleonora Menicucci (Secretaria das Mulheres) sobre a ditadura militar e a Comissão da Verdade criaram um mal-estar entre o governo Dilma e parte dos militares.

Uma nota assinada pelos presidentes do Clube Naval, da Aeronáutica e Militar critica o fato de a presidenta Dilma Rousseff não ter desautorizado as duas ministras.

Em 8 de fevereiro, Maria do Rosário comentou em entrevista ao jornal Correio Brasiliense sobre a possibilidade de processos judiciais contra agentes repressores da ditadura militar, a exemplo do que ocorreu em países vizinhos como a Argentina.

“Mais uma vez esta autoridade da República sobrepunha sua opinião à recente decisão do STF, instado a opinar sobre a validade da Lei da Anistia. E, a Presidente não veio a público para contradizer a subordinada”, diz a nota.

Em sua posse, Eleonora Menicucci fez referência ao tempo em que ela e Dilma foram presas políticas na mesma cela, quando lutavam contra a ditadura militar. A declaração também irritou os militares. Para eles, a militância de Menicucci tinha o intuito de implantar, por meio da força, uma ditadura “nunca tendo pretendido a democracia”.

Por fim, a nota aponta que o PT cometeu uma falácia quando, ao divulgar as resoluções políticas tiradas em seu aniversário de 32 anos, o partido destacou o resgate da memória, junto à sociedade, da luta pela democracia durante a ditadura. “Pode-se afirmar que a assertiva é uma falácia, posto que quando de sua criação o governo já promovera a abertura política, incluindo a possibilidade de fundação de outros partidos políticos, encerrando o bi-partidarismo”.

Os militares se dizem preocupados com a ausência de manifestações da presidenta e cobram dela uma reaproximação com as posturas assumidas durante a posse, de estender a mão aos partidos e grupos de oposição que não apoiaram sua candidatura.

Aprovada no final do ano passado, a Comissão da Verdade não satisfez os militares nem os setores de esquerda e familiares de vítimas do período militar. Para eles, a comissão não tem recursos suficientes para apurar abusos de todo período proposto. Ao mesmo tempo, os clubes militares temem a penalização de agentes repressores e apelidaram a banca de “Comissão da Vingança”.


Fonte: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/militares-pedem-que-dilma-desautorize-ministras/

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Mais focada, privatização de Lula-Dilma não tem abrangência da era FHC

São Paulo – Apesar do discurso de lideranças tucanas, a política de privatização do governo federal na era Lula-Dilma possui características distintas daquela realizada na administração de Fernando Henrique Cardoso.

Nesta quarta-feira (8), FHC defendeu, após o leilão dos aeroportos de Guarulhos, Campinas e Brasília, que “privatização não é uma questão ideológica”. No Congresso, parlamentares do PT e do PSDB deram início a uma guerra de palavras.

Para uns, o governo petista fez o mesmo que o tucano, apesar do discurso antiprivatização da campanha. Para outros, o modelo de concessão de aeroportos não privatiza um bem público, uma vez que o governo manterá parcela acionária e o retomará em no máximo 30 anos.

Ainda que se aceite essa ponderação, é inegável que o governo abriu mão de boa parte do controle de três dos terminais mais importantes do país. Privatizou, ainda que temporariamente. Mas também é inegável que fez isso de maneira distinta do que ocorrera no passado.

No cerne da questão estão a abrangência das operações realizadas e o papel que se deseja para o Estado no ordenamento econômico. Na era FHC, a privatização era uma estratégia-chave para alterar as funções do Estado brasileiro na economia.

Com as estatais endividadas, avaliava-se que a capacidade de o Estado promover investimentos, tarefa historicamente cumprida, estava abalada, tornando-se fundamental impulsionar o setor privado. Era necessário por fim à era Vargas, dando um choque de capitalismo ao Brasil.

“Na redefinição do papel do Estado, caberá ao setor privado uma presença significativa, sobretudo nos investimento em infra-estrutura”, escreveu FHC em seu programa de governo lançado como livro em 1994, o “Mãos à obra, Brasil”.

Ritmo acelerado
Em 1995, FHC, em seu primeiro ano no poder, criou o Conselho Nacional de Desestatização, com o objetivo de acelerar a execução do Programa Nacional de Desestatização (PND), gestado como lei ainda no governo Collor.

A Usiminas já havia sido vendida em 1991. Em seu projeto de reforma, FHC incluiu no PND companhias públicas dos setores de eletricidade, transportes e telecomunicações, além de uma das jóias da coroa, a Vale do Rio Doce – que acabou negociada em 1997.

Nesse mesmo ano, o governo intensifica o uso do BNDES como financiador da desestatização, inclusive de empresas estaduais. E aprova a Lei Geral de Telecomunicações, abrindo o mercado aos estrangeiros.

A marcha privatizadora seguiu por 1998, com as vendas do terminal de contêineres do Porto de Sepetiba (RJ), das Centrais Elétricas Geradoras do Sul e da malha ferroviária paulista.

Em 1999, foi a vez de novas concessões na área de telecom, da Datamec (empresa de processamento de dados) e do porto de Salvador. Em 2000, do Banespa e das ações que excediam o controle acionário detido pela União na Petrobras.

Até 2002, último ano de FHC no Planalto, à União arrecadou cerca de US$ 31 bilhões com todo o processo de privatização, em valores da época calculados pelo BNDES, somando entrada de recursos e transferência de dívidas.

Pé no freio
A partir de 2003, com o fim do ciclo tucano e o início do governo Lula, a privatização saiu do primeiro plano da agenda nacional. Entretanto, jamais deixou de ser executada, no sentido de concessão a agentes privados da execução de obras e de serviços antes públicos.

A estratégia, porém, foi restrita a alguns setores do governo, em especial o elétrico. Essa área era comandada pela então ministra da Minas e Energia Dilma Rousseff, que permaneceu no cargo até ser promovida à Casa Civil, em junho de 2005.

Era um sinal de que a atual mandatária confiava em parcerias com o setor privado. Ainda em 2003, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) manteve a outorga de concessões para exploração de empreendimentos de transmissão incluídos no PND. Foram leiloadas onze linhas de transmissão em oito Estados, gerando investimentos de R$ 1,8 bilhão, em valores da época.

No ano seguinte, o governo Lula foi alvo de críticas de uma de suas bases mais tradicionais, os trabalhadores bancários, por leiloar o Banco do Estado do Maranhão (BEM). O comprador foi o Bradesco. Em 2005, foi a vez de o Banco do Estado do Ceará (BEC) ser alienado, também para o Bradesco.

Em 2006, o governo incluiu no PND as instalações de transmissão de energia elétrica da Rede Básica do Sistema Elétrico Interligado Nacional. A outorga de concessões para exploração de empreendimentos de transmissão continuou.

Transportes privatizados
Em 2007, o sistema de concessões foi absorvido pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), que licitou 2,6 mil Km de rodovias federais. De modo distinto às administrações tucanas, a estratégia foi negociar tarifas de pedágio menores. Também data desse ano o decreto que inclui no PND o trem-bala entre Campinas, São Paulo e Rio de Janeiro.

No ano seguinte, foi realizado o leilão da Usina Hidrelétrica Jirau, no rio Madeira, em Rondônia. O vencedor foi o Consórcio Energia Sustentável do Brasil, que teve como preço final ofertado pela energia R$ 71,37/ MWh. Participam do grupo a Suez Energy, Camargo Corrêa, Eletrosul e Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf).

Depois do setor elétrico e das rodovias, foi a vez de o setor aeroportuário entrar no PND, através do Aeroporto Internacional de São Gonçalo do Amarante, no Rio Grande do Norte. Seria o prenúncio dos leilões agora realizados e que resultaram na concessão dos terminais de Guarulhos, Campinas e Brasília.

Ainda que as privatizações de Lula-Dilma tenham deixado o setor elétrico e de telecom e chegado às rodovias e aos aeroportos, sua abrangência permanece reduzida em relação aos sentidos da privatização no governo FHC. O que domina a agenda pública agora é um retorno ao papel planificador do Estado.

Com esse objetivo, o governo federal altera a exploração petrolífera de um regime de concessões para o de partilha, e prepara o Plano Nacional de Banda Larga. Nos aeroportos privatizados, a Infraero manterá parcela acionária para permanecer monitorando as companhias privadas que venceram o leilão. Resta saber como esse novo arranjo na prática se dará.

Fonte:http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=19585

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Joana Tavares: Despolitizando o governo Dilma

Despolitizando o governo Dilma
Grande mídia gosta de tachar a gestão da presidenta de “técnica” – e a elogia por isso –, mas analistas rechaçam essa caracterização e apontam que o principal problema não é um suposto perfil empresarial da administração petista, mas seu caráter de composição de classe.
Joana Tavares, no Brasil de Fato, via Moto-Próprio
Roberto Setúbal, o principal executivo do banco Itaú, declarou em entrevista durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos, que “gosta de tudo” que tem visto no governo Dilma. Afirmou que a presidenta tem uma intenção de deixar o governo “mais técnico, com presença cada vez maior de técnicos em áreas importantes”.
Ele não é o único que tem analisado – ou tentado tachar – a gestão Dilma Rousseff como empresarial, voltada para políticas de metas e resultados. Os exemplos não são poucos. Começou com a construção de Dilma como candidata: ela foi classificada como “gerente” do governo Lula, responsável por administrar os investimentos federais, coordenando programas de vulto como o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).
Quando Antonio Palocci deixou a poderosa Casa Civil – responsável pelas articulações políticas e pela coordenação de programas de governo – Gleisi Hoffmann assumiu o posto já com a alcunha de ser “a Dilma da Dilma”, a gerente-geral dos ministérios.
Depois, veio a substituição de Alfredo Nascimento – acusado de desvio de recursos – por Paulo Sérgio Passos, que era secretário-executivo do Ministério dos Transportes. Os dois são do mesmo partido, o PR. Em seguida, a saída de Nelson Jobim da Defesa, substituído por Celso Amorim, ex-chanceler do governo Lula.
Wagner Rossi, da Agricultura, envolvido em denúncias de corrupção na Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), pediu demissão e deixou a vaga para Mendes Ribeiro, do mesmo partido, o PMDB. Pedro Novais, do Turismo, também entregou o cargo após denúncias de ter desviado recursos públicos para causas pessoais. Gastão Vieira, também do PMDB, entrou em seu lugar. Ainda em 2011, Orlando Silva deixou o Ministérios dos Esportes, acusado de fraudes em convênios, e foi substituído pelo também membro do PCdoB Aldo Rebelo.
Discute-se ainda a substituição de Carlos Lupi, demitido do Ministério do Trabalho, mas a indicação deverá vir de seu partido, o PDT. Outra troca foi no Ministério das Cidades. Saiu Mário Negromonte, e entrou Aguinaldo Ribeiro; os dois do PP.
“Capacidade operacional”
Com exceção da troca de Jobim por Amorim, comemorada por setores da esquerda, as demais tiveram um roteiro parecido: denúncias de corrupção nos jornais, pedido de demissão do acusado, nomeação de um partidário da mesma legenda do ministro derrubado.
Além desses casos, houve a saída de Fernando Haddad, da Educação, para que o petista possa se dedicar à campanha para prefeito de São Paulo. Aloizio Mercadante, quadro antigo do mesmo partido, deixou o Ministério da Ciência e Tecnologia para assumir o posto de Haddad. Em seu lugar, entrou Marco Antônio Raupp, considerado um perfil “técnico” para o cargo. Na Petrobras, sai José Sergio Gabrielli e entra Maria das Graças Foster que, apesar de filiada ao PT, fez carreira na empresa, e não nos bastidores da articulação política.
Essas mudanças no comando dos cargos foi apelidada pela grande mídia de “faxina”, e contribuiu para consolidar a imagem da presidenta como uma competente administradora, interessada em fazer a máquina pública funcionar, montando finalmente um ministério com sua “marca”, afastando os indicados pela gestão Lula e nomeando pessoas com capacidade operacional, em detrimento de critérios “políticos”. O governo também se utiliza desse vocabulário, buscando atrelar-se a uma imagem de eficiência.
No entanto, analistas e militantes apontam que há uma continuidade entre as gestões e o principal problema não é um suposto perfi l técnico do governo Dilma, mas seu caráter de composição de classe.Composição do governo
“Isso [o suposto perfi l técnico do governo Dilma] é uma maneira que a grande imprensa encontrou para separar a presidenta Dilma do Lula, fazendo esse jogo de intrigas, para tentar avançar uma agenda mais conservadora. Entendemos que não existe técnica neutra. A presidente Dilma não é criança pra embarcar no jogo de achar que é possível montar um governo técnico para colocar sua cara no governo”, analisa João Antonio de Moraes, coordenador da Federação Única dos Petroleiros (FUP). Ele aponta que a nomeação de Graça Foster para a Petrobras, por exemplo, representa uma continuidade de gestão, com compromissos parecidos, “tanto na relação partidária como na visão da gestão da empresa”. Para ele, a dificuldade central para fazer avançar a pauta dos trabalhadores – como o cumprimento integral do acordo coletivo e a priorização do caráter público, não mercadológico, da empresa – é a aliança de sustentação de classe, na composição de um governo de coalizão.
Para Moraes, a diferença central entre o governo Lula e o de Dilma vem de fora. “A imprensa tem tido um tratamento mais, digamos, ameno, em relação ao governo Dilma. A mídia teve uma visão mais preconceituosa com o Lula, por ele ser um operário. Isso acaba tendo um peso maior que a diferença do governo em si”, pondera.
O professor de jornalismo da faculdade Cásper Líbero Gilberto Maringoni frisa que “não existe governo com perfil técnico. Toda ação de governo é, por definição, política”. Ele cita o exemplo dos governos de Itália e Grécia, tidos como técnicos e comandados por banqueiros, cujas gestões se situam mais à direita que as anteriores.
Leidiano Farias, militante da Consulta Popular, aponta que a crise econômica foi a desculpa para o capital financeiro implementar esse tipo de governo nos países em crise. “Governos técnicos expressam uma concepção de governo antinacional e impopular”, salienta.
Despolitização
“A separação entre política e técnica sempre foi uma ideia cara ao pensamento conservador. A composição do governo brasileiro segue sendo a de incorporar o maior espectro de correntes políticas possível, para eliminar a oposição”, explica Maringoni.
Para ele, o maior problema do governo Dilma não é o enfrentamento externo, e sim a oposição interna. “Grande parte da direita brasileira está abrigada na administração. Isso não quer dizer que este seja um governo de direita. Quer dizer que a oposição está dentro do governo e isso tem decorrências na gestão dos negócios públicos”, diz.
A oposição a bandeiras populares, como a reforma agrária, a CPI da Privataria e a redução dos juros, entre outros, vem, assim, do próprio governo, que, mesmo tendo maioria no Congresso, não consegue avançar para além de uma pauta conservadora.
Leidiano observa que o governo Dilma herda o caráter de conciliação da gestão de Lula, ainda que dialogue com um perfil mais técnico. “Os trabalhadores, a burguesia industrial, a burguesia financeira, a burguesia agrária e comercial estavam representadas no governo Lula e continuam representadas no governo Dilma. Isso se expressa na coalizão de partidos liderada pelo PT. É um governo permeado de contradições”, ressalta.
O escritor e militante petista Wladimir Pomar reforça que a tentativa de diferenciação entre os dois governos vem da grande imprensa, que tenta impor à gestão de Dilma um caráter técnico que o tornaria de outro tipo. “Na verdade, essa separação entre técnica e política faz parte da mistificação com que as classes dominantes sempre tentaram empulhar os dominados. Em qualquer dos poderes do Estado, todos os cargos são políticos, embora todos eles também tenham um caráter técnico a ser levado em conta. Mas qualquer técnico que assuma um cargo no governo está assumindo um cargo e uma missão, antes de tudo, políticos”, enfatiza.
Ele analisa que a grande imprensa tem como programa despolitizar o governo Dilma, ao mesmo tempo em que promove uma ideologização do debate político, com o propósito de confundir as forças, dividir o governo de coalização e derrotá-lo nas eleições. “A grande imprensa procura se aproveitar do fato de que a questão central do governo, hoje, consiste em colocar em prática um grande projeto nacional de desenvolvimento econômico e social, o que pode aparentar um plano de metas”, aponta. Para ele, os grandes projetos colocados em prática pelo governo têm um caráter estratégico, com grande conteúdo político, mas estão sendo esvaziados pela cobertura midiática.
Projeto e mobilização
O sociólogo Chico de Oliveira concorda que o governo Dilma segue o script do governo Lula, mas discorda da caracterização do projeto colocado em prática. Na sua avaliação, não há plano nenhum, “apenas a consolidação dos projetos governamentais em curso”. As mudanças do governo, na sua leitura, seguem e seguirão na linha do amplo leque de alianças forjado por Lula. “Não tem nenhum paradigma político em particular; é simplesmente pragmático”, defende. “Dilma seguirá pela linha de menor resistência, isto é, mais do mesmo. O que estiver dando certo, ela tentará seguir”, analisa.
Para ele, o ciclo Lula se encerra no mandato de Dilma, e mesmo o ex-presidente não deve voltar com uma plataforma profunda de reformas. “O ciclo Lula acabou. O governo Lula, e seu período, ao contrário do que se esperava – e eu me incluo entre esses – é a culminação longínqua do regime militar, com sua decidida política privatista e seu jogo de divertissement – enganação, na verdade, segundo a língua francesa – para os pobres”, critica.
Wladimir Pomar analisa que o projeto de desenvolvimento econômico e social que os governos petistas estariam executando garante tanto a implementação de políticas voltadas para as camadas populares quanto a geração de lucros para os capitalistas. Ele aposta que, ao aumentar a força social dos trabalhadores, esse modelo de desenvolvimento fortaleça também a média burguesia nacional, que pode enfrentar a burguesia associada aos monopólios estrangeiros.
“Cria, portanto, as condições materiais para o delineamento das classes em disputa e para o desenvolvimento da luta de classes. É dessa luta que pode emergir, com mais clareza, um verdadeiro projeto popular, ou democrático-popular, ou socialista”, reforça. Para ele, a força demonstrada pelas classes populares é que vai definir os rumos do governo.
Leidiano caracteriza o projeto em prática como “neodesenvolvimentismo conservador”, pois não é articulado com reformas estruturais. Ele aponta que a idéia do “melhorismo” tem limites, e reforça a necessidade de um forte movimento de massas para pressionar a execução de reformas essenciais para o povo brasileiro. “Para o governo reivindicar esse projeto teria que romper com seu caráter de conciliação, teria que aceitar o conflito de interesses de classes como uma forma de resolver os problemas do povo”.


A RIO-20 DOS RICOS: 'EU CONSUMO, VOCE JEJUA'

"(antes) a solução que as pessoas encontravam era 'controle a população dos países em desenvolvimento, porque senão eles vão consumir o que nós precisamos (...) é a visão (malthusiana) de que o problema do mundo é que tem pobre demais e poucos recursos naturais. Agora a preocupação é outra: os pobres estão virando classe média (...) o que é uma ótima notícia. E também é verdade que isso representa um desafio para o ambiente. Mas a solução não é restringir o consumo só deles. A solução é um esforço mundial para que não haja uma divisão do gênero: a classe média americana pode ter quatro carros e classe média indiana tem que andar de bicicleta. A sinalização (deles) é a seguinte: "Nós inventamos esse conceito de classe média meio para a gente. Não é para vocês, não. Isso não é possível (...) não se pode aceitar é que os países desenvolvidos considerem que nós temos que repensar o que é padrão de consumo de classe média, e eles, não " (embaixador André Aranha Corrêa do Lago, negociador-chefe do Brasil para a Rio+20, para quem essa é uma conferencia sobre desenvolvimento sustentável; Valor; 16-02)


Dilma acha que 'exagerou' com movimentos sociais e tenta mudar

Brasília – A presidenta Dilma Rousseff acredita que ela e o governo “exageraram” no rigor com movimentos sociais no ano passado e quer remediar a situação em 2012. Menos afeita do que o antecessor a conversar diretamente com os movimentos, Dilma está disposta a tentar abrir-se mais daqui para frente. E não pretende mais colaborar com a demonização deles pelo governo, como aconteceu em 2011 a partir de escândalos a envolver organizações não-governamentais (ONGs).

O primeiro gesto individual da presidenta para tentar melhorar a relação dela com os movimentos foi ter feito uma reunião fechada com cerca de 90 representantes de 35 entidades, durante a passagem dela pelo Fórum Social Temático, em Porto Alegre, no dia 26 de janeiro.

A reunião foi planejada, segundo fonte do Palácio do Planalto que conversou com a reportagem, para que Dilma ouvisse e os movimentos pudessem falar à vontade. E não apenas a respeito do tema que, em tese, era o foco do encontro, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, que o Brasil sediará em junho. Mas de tudo.

Pela biografia diferente da do ex-presidente Lula e por estar se acostumando ao cargo, em 2011, Dilma negociou pouco frente a frente com os movimentos, o que irritou líderes de centrais sindicais e entidades campesinas, por exemplo. Para eles, a presidenta preferia sentar e escutar o empresariado.

Como a reunião de Dilma com os movimentos, em um hotel de Porto Alegre, era a aberta a qualquer tema, a presidenta teve a chance de pela primeira vez comentar com gente de fora do governo, mesmo que a portas fechadas, a violenta ação de despejo contra sem-teto em São José dos Campos, que ela chamou de “barbárie”.

O caso Pinheirinho, aliás, está sendo aproveitado pelo governo para mostrar aos movimentos que ele ainda são, sim, aliados. Por isso, desde a primeira hora pós-despejo, o ministro Gilberto Carvalho (Secretaria Geral da Presidência) deu declarações que buscam demarcar a diferença (para ele, “de método”) na forma como o governo lida com os movimentos, comparado ao PSDB.

Verba a ONGs

Principal interlocutor de Dilma e do governo perante os movimentos sociais, Carvalho também tem a responsabilidade de tentar desatar um nó, apertado demais com ajuda do próprio governo, na relação com os movimentos. É a revisão da legislação das ONGs, processo que envolve diversos ministérios, mas que está sob comando da Secretaria Geral.

No ano passado, as ONGs tornaram-se vilãs nacionais por causa de denúncias jornalísticas de corrupção que custariam o cargo de uma série de ministros. Foi assim no Esporte, no Trabalho e no Turismo, por exemplo, todos envolvidos em acusações de que o repasse de verba para ONGs era uma forma de desviar dinheiro público.

Os episódios levaram Dilma a baixar decretos draconianos sobre transferência de verba para ONGs e a pedir à equipe que preparasse novas regras.

O clima anti-ONGs dentro do governo e de suspeição geral contra essas entidades na imprensa deu origem a situações em que, segundo um colaborador direto de Dilma, claramente “nós exageramos”.

O melhor exemplo do “exagero”, de acordo com esta mesma fonte, talvez tenha sido a recusa do ministério do Desenvolvimento Social de firmar convênio de construção de 750 mil cisternas no Nordeste com uma conhecida e poderosa entidade da região, a Articulação do Semi-Árido (ASA).

A ministra Tereza Campello teve receio de que o contrato, por sua dimensão, um dia se voltasse contra ela e evitou autorizá-lo.

A ASA reagiu à postura do governo com um grande protesto em dezembro, para o qual conseguiu mobilizar cerca de 15 mil pessoas em pleno sertão nordestino, a ponto inclusive de bloquear uma ponte importante que liga Juazeiro (BA) a Petrolina (PE).

Um dia depois da reunião de Dilma com os movimentos sociais em Porto Alegre, a Fundação Banco do Brasil divulgou edital para contratar fornecedores de um primeiro lote de 60 mil cisternas, numa licitação que se encerrará dia 27 de fevereiro.

Coordenadora do processo de revisão da legislação das ONGs, a Secretaria Geral deve concluir uma proposta em março. As linhas gerais foram apresentadas a “ongueiros” durante o Fórum Social Temático, em Porto Alegre.

Segundo Gilberto Carvalho, a proposta vai manter a previsão de financiamento público das ONGs, ou seja, o governo não vai acabar com os convênios.


Obsessão crescente de Dilma com gestão desanima tropa política

Brasília – A presidenta Dilma Rousseff passou dois dias no Nordeste na semana passada vistoriando a transposição do rio São Francisco e a ferrovia Transnordestina, obras federais bilionárias. Durante o giro, aproveitou uma entrevista para avisar empreiteiros que tocam obras públicas. Daqui em diante, todas terão monitoramento sistemático e online pelo governo, metas serão cobradas, prazos deverão ser cumpridos. “Nós queremos obra controlada”, disse.

O recado ilustra como Dilma está cada vez mais obcecada pelo tema gestão, traço que carrega desde os tempos de “mãe do PAC”, o programa de obras do antecessor. Na primeira reunião ministerial do ano, em janeiro, Dilma já tinha alertado a própria tropa, sobre a importância crescente que dá à gerência. Cobrara a implantação de um novo sistema de acompanhamento de gastos, que permita “uma verdadeira reforma do Estado”, tornando-o “mais profissional e meritocrático”.

A fixação de Dilma por gestão foi a causa principal, segundo a reportagem apurou, da crise de hipertensão que mandou a ministra do Planejamento, Miriam Belchior, ao hospital dias atrás. Atual “mãe do PAC”, que ajudara a supervisionar com Dilma quando ambas eram da Casa Civil de Lula, Miriam levou a responsabilidade junto para o novo cargo. Agora, vê a presidenta insatisfeita, pressionando-a por resultados e cogitando devolver a atribuição à Casa.

Mais do que na saúde, o reforço do enfoque gestor de Dilma impacta o espírito da máquina pública. Sobretudo em círculos mais lulistas. Em diversos escalões, sente-se falta de debates internos sobre rumos e políticas públicas, de decisões colegiadas, da retórica polêmica do ex-presidente. Sente-se falta, em suma, de mais política, entendida como construção coletiva e negociada, que perde espaço à medida que a postura gerente avança.

"Esse é o nosso governo, mas é outro governo”, diz um secretário-executivo de ministério, cujo nome será preservado, como o de todos os personagens desta reportagem, para evitar embaraços.

É uma constatação evidente desde as primeiras horas do terceiro mandato presidencial petista, não raro acompanhada de solavancos cotidianos, como a suspensão inegociada de rotinas ou a desconfiança sobre lealdades. “Às vezes, somos tratados como oposição”, afirma um assessor governamental que frequenta o Palácio do Planalto desde Lula.

Certa vez, ainda em 2011, a reportagem perguntara a um ministro egresso da gestão Lula e que hoje não está mais no cargo, se o governo Dilma era muito diferente. “Nem me fale...”, respondera ele, sem hesitar, ar preocupado.

“Agora as decisões são tomadas só no gabinete do ministro. Às vezes, com o secretário-executivo”, aponta, como uma dessas diferenças, um dirigente de escalão intermediário de um ministério.

Impacto externo

Se mexe com o espírito da tropa, a postura distinta de Dilma não parecer causar problemas perante o público externo. Ao contrário. Ela ostenta hoje índices de popularidade superiores aos de Lula e FHC, quando os dois tinham o mesmo tempo de Presidência. E isso, apesar de já ter trocado sete ministros por denúncias de corrupção publicadas pela imprensa, simpática à atitude gerente da presidenta.

O estilo Dilma possui, contudo, potencial para virar um problema político e se voltar contra ela. Sem se considerar participante de um projeto coletivo, com o qual se identifique e no qual veja um pouco de si, a máquina tende a desanimar mais e a se mostrar menos disposta a defender o governo em debates públicos, entrevistas ou uma eventual crise.

Há o mesmo risco no Congresso, entre partidos e parlamentares aliados, também eles formadores de opinião. Depois de um ano de pouco contato com a presidenta, ao contrário do que acontecia nos tempos de Lula, ninguém duvida. Dilma não gosta de política, fica mais feliz e à vontade lendo relatórios em seu gabinete, do que em cima de palanques ou num tête-a-tête com políticos.

No início do mês, quando o Congresso reabriu depois de umas semanas de férias, um líder de partido governista observava o senador José Sarney (PMDB-AP) discursar para um plenário vazio e desatento, e comentou: “Veja isso. O presidente do Congresso está falando e ninguém ouve. Cadê a Dilma? Ela tinha de vir todo ano nessa sessão. Não vir é um sinal, quer dizer muito.”

É preciso registrar, entretanto, que é costume o presidente da República mandar ao Congresso, na volta do recesso, seu chefe da Casa Civil levar o documento com as prioridades do governo. E foi isso que Dilma fez, ao despachar a ministra Gleisi Hoffmann, de quem a presidenta espera cada vez mais que funcione como ela, Dilma, funcionou para Lula durante cinco anos.

Segundo um assessor governamental, a postura gerente de Dilma tende a fazer de Gleisi uma peça política cada vez mais importante, como teria ficado demonstrado na reunião ministerial de janeiro, em que a presidenta emitiu sinais de que a auxiliar de Palácio do Planalto “cresceu”.

Até agora, o grande ganhador político da tropa dilmista é o ex-senador Aloizio Mercadante. Dias antes de tirá-lo da Ciência e Tecnologia para botá-lo na Educação, mas já tendo anunciado a decisão de fazê-lo, Dilma viajara ao Rio de Janeiro. Em conversa com o governador Sérgio Cabral (PMDB), ouvira uma pergunta sobre o motivo da mudança. “O Mercadante é a maior revelação do meu governo”, respondera Dilma, segundo relato de uma testemunha.

Na própria posse do ministro, Dilma revelaria a razão de o auxiliar estar em alta. “O ministro Mercadante é um excelente gestor”, afirmou a presidenta, para quem este era um “talento escondido” do ex-senador petista.

O incômodo do Congresso com a postura mais técnica de Dilma não deve, porém, produzir efeitos neste ano de eleições municipais. Segundo o líder do PT no Senado, Walter Pinheiro (BA), a eleição deve gerar colaboracionismo entre parlamentares e governo, porque os primeiros terão interesse de contribuir para a realização de investimentos nos municípios, o que ajudaria o grupo político deles.

Entre os chamados movimentos sociais, igualmente formadores de opinião, existe a mesma ameaça de que a sensação de despolitização geral do governo, patrocinada por Dilma, se volte contra a presidenta.

Não por acaso, a presidenta começou 2012 reconhecendo que "exagerou" com os movimentos, ao manter-se distante deles no ano passado, e agora tentativas de reaproximação, como fez ao topar se sentar com um grupo grande de movimentos para discutir com eles a Rio+20, a Conferência das ONU sobre Desenvolvimento Sustentável.


Papel da PM precisa ser revisto, dizem especialistas

Brasília - Homicídios, roubos, saques. Confrontos entre manifestantes e forças policiais federais. A violência explode nas ruas da Bahia, enquanto policiais militares de capuz na cabeça e armas em punho amotinam-se na Assembleia Legislativa, atrás de aumento salarial. As notícias que chegam do estado assustam e reacendem debate sobre o papel da polícia militar (PM), organização que tem no DNA a repressão popular e foi fartamente utilizada pela ditadura de 64 contra adversários.

O Brasil precisa de policiamento ostensivo feito por pessoas com cabeça e treinamento militar? PMs devem ter o direito à organização sindical como outras categorias, algo negado militares? São perguntas com respostas difíceis e que desafiam até governos trabalhistas, como é o caso na Bahia, onde as negociações parecem não avançam.

Para o antropólogo Luiz Eduardo Soares, ex-secretário Nacional de Segurança Pública no primeiro ano de governo do ex-presidente Lula, mais do que discutir a legitimidade ou não desta greve específica, é preciso acabar com o vínculo entre polícias militares estaduais e Exército.

“A estrutura organizacional da segurança pública no Brasil, herdada da ditadura, é um arranjo negativo para todos, que prejudica a sociedade, os governos e os próprios trabalhadores policiais”, afirma. "Se o cordão umbilical da PM com o Exército não for cortado, teremos sempre o grito das ruas, a chantagem e o acuamento dos governos."

Segundo ele, apesar de as PMs terem funções diversas das atribuídas às Forças Armadas, elas são subordinadas não só aos governos estaduais, mas ao próprio Exército. E isso implica proibição de organização sindical. Sem liberdade para se organizarem de forma democrática, às vezes insatisfações funcionais explodem em praça pública.

“E quem acaba liderando essas explosões não são lideranças legítimas, qualificadas, com experiência política, mas quem fala mais alto, consegue mobilizar as paixões e não se intimida em chantagear os governos para alcançar seus objetivos”, afirma.

Para o antropólogo, não é com vandalismo, armas e máscaras que trabalhador deve se organizar. Mas ele acredita que os governos também são culpados, ao fazer "vista grossa" a reivindicações dos PMs.

Especializado em polícias militares, o sociólogo Romeu Karnikowski lembra que elas surgiram depois da proclamação da República como milícias a serviço de oligarquias locais. “A baiana, inclusive, participou ativamente da repressão à Canudos”, afirma, em referência ao movimento de caráter religioso liderado por Antônio Conselheiro no fim do século 19.

Segundo o sociólogo, com a centralização do poder militar no Exército, sob controle federal, as polícias militares assumiram a exclusividade do policiamento ostensivo nos estados. “As polícias militares deveriam ter sido extintas, mas foram reativadas pela ditadura para atuarem como forças repressivas, e não como polícias de segurança”.

A violência contra a casta mais baixa dos PMs só se agravou no período. “A submissão dos praças sempre foi tão grande que, até a Constituição de 1988, eles não tinham sequer o direito de votar nas eleições”, conta.

Mas o “desaquartelamento” da corporação trouxe benefícios, na opinião do estudioso. “Jogados no policiamento ostensivo, os policiais ficaram mais expostos ao contato com a população civil e começaram a desenvolver outra percepção de cidadania. A capacidade reivindicatória cresceu. A luta de classes dentro das polícias, que estava latente, só se intensifica”, afirma.

Para Karnikowski, é neste contexto que a greve da PM baiana precisa ser analisada. “Mais do que um movimento reivindicatório, é uma manifestação da crise estrutural das polícias brasileiras e uma luta social que, infelizmente, parte da esquerda não sabe como lidar. Um exemplo disso é o governador Jacques Wagner [PT] enviar tropas para cercar a Assembleia Legisltiva da Bahia, tensionando ao limite essa crise”.

O governador estava no exterior em viagem com a presidenta Dilma Rousseff, quando o motim começou.

O comando do Exército na jurisdição dentro da qual está a Bahia, a VI região militar, pertence ao general Gonçalves Dias. O general foi chefe da segurança do ex-presidente Lula durante os oito anos de mandato do petista. G.Dias, como era conhecido nos tempos de Presidência, é quem está à frente das operações militares hoje na Bahia contra os amotinados.

Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=19560

Denunciado pela oposição, Mantega acha que é alvo de 'fogo amigo'

O ministro mais antigo e poderoso começou o ano enredado por uma trama de US$ 25 milhões em supostas propinas que já lhe custou um pedido, por parte de adversários do governo, de investigação pela Procuradoria Geral da República e uma onda de boatos sobre sua saída do cargo.

Mas Guido Mantega, da Fazenda, não só encara as especulações com bom humor e obra de "fogo amigo", como gosta de ser ministro como talvez nenhum outro, o que afasta a hipótese de pedir demissão. E goza de prestígio junto à presidenta Dilma Rousseff, o que reduz as chances de bilhete azul.

A solicitação à Procuradoria para que investigue suposta improbidade administrativa de Mantega foi apresentada por parlamentares inimigos do governo nesta quarta-feira (14). Eles querem saber se o ministro prevaricou, ao manter no comando da Casa da Moeda dirigente suspeito de praticar irregularidades.

Demitido no fim de janeiro, Luiz Felipe Denucci foi acusado, em reportagens da imprensa, de ter recebido US$ 25 milhões no exterior de empresas que fariam negócios com a Casa da Moeda. A informação teria chegado a jornalistas por ação de políticos ligados ao PTB, cujo líder na Câmara dos Deputados, Jovair Arantes (GO), Mantega diz ser o patrono da indicação de Denucci.

Antes de se tornarem públicas, as denúncias chegaram ao ministro, como ele próprio reconhece. Mas o afastamento de Denucci não foi imediato, o que, para a oposição, caracterizaria improbidade, daí a denúncia levada à Procuradoria Geral.

Na segunda-feira (13), a Comissão de Ética da Presidência decidiu abrir um processo contra Denucci, pois entende que ele deveria ter atualizado as informações sobre suas finanças pessoais perante o governo.

A ida da oposição à Procuradoria, o movimento da Comissão de Ética e tentativas de parlamentares de forçar a presença de Mantega no Congresso para prestar esclarecimentos estão criando um clima negativo em torno do ministro. E deram origem a boatos, em Brasília, de que ele já até teria pedido demissão, algo que Mantega negou nesta terça-feira (14), depois de participar de reunião de Dilma com partidos aliados.

“Eu vou continuar remando, sim, como tenho remado há seis anos”, afirmou Mantega, ao ser questionado depois da reunião se iria sair ou continuar no governo. Para ele, o que se fala sobre seu afastamento “são piadas de mau gosto”.

A presença de Mantega na entrevista foi uma determinação da própria presidenta, o que sinaliza como ela encara a situação do auxiliar. O ministro não queria contato com a imprensa, para não ter de responder perguntas sobre sua permanência, e tinha deixado o Palácio do Planalto assim que a reunião acabara. Estava a caminho da Fazenda, quando Dilma mandou que ele voltasse e falasse com a imprensa sobre a reunião do chamado Conselho Político, na qual o governo pediu apoio à sua política econômica.

Dias atrás, quando as especulações sobre a demissão de Mantega começaram, Dilma divulgara uma nota em defesa do auxiliar. “As pessoas que espalham esses rumores prestam um desserviço ao país. Não se sabe a quais interesses inconfessáveis elas servem.

"No ano passado, quando reportagens diziam que Mantega deixaria o governo – aparentemente com informações disparadas do círculo próximo ao então ministro Antonio Palocci -, Dilma orientou assessores a procurarem a imprensa para dizer, em nome dela, que o ministro da Fazenda ficaria.

A exemplo do que ocorreu em 2011, Mantega acha, segundo a reportagem apurou, que mais uma vez as “piadas de mau gosto” partem de gente de dentro do governo que gostaria de tirá-lo do cargo.

Uma certa rigidez de postura do ministro tem contribuído de fato para um certo mal-estar, como por exemplo a instransigência dele quanto ao tamanho do pagamento de juros da dívida pública ao “mercado”.

No ano passado, diante de uma arrecadação de impostos que se mostrou acima do previsto, Mantega convenceu Dilma a guardar R$ 10 bilhões para aumentar o pagamento de juros. Setores do governo e parlamentares aliados tinham esperança de que a bolada pudesse ser usada para repor no orçamento parte dos gastos cortados no início de 2011 e para que fossem pagas obras propostas por congressistas (emendas).

Neste ano, Mantega começa com a mesma postura. Investimentos e pagamento de juros são prioridade, gastos com emendas não.

O ministro também tem sido duro no acolhimento de pedidos de nomeação em cargos no Banco do Brasil formulados pelo presidente da Câmara dos Deputados, Marco Maia (PT-RS).

Por enquanto, porém, o ministro segue no cargo, pelo qual, segundo a reportagem apurou, ele tem um gosto que não encontra paralelo entre outros colegas. Hoje, com seis anos de Fazenda, Mantega é o terceiro ministro há mais tempo no cargo. Perde para Delfim Netto (sete anos) e Pedro Malan (oito anos). Se for até o fim com Dilma Rousseff, vai figurar na galeria de ministros da Fazenda como o mais longevo da história do Brasil República.